Zerozero
·14 Februari 2025
Rivalidade, fé e paixão antes do Dérbi: histórias na fronteira entre Braga e Guimarães
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Zerozero
·14 Februari 2025
Apelidada na gíria popular de «mais velha que a Sé de Braga», a rivalidade entre Vitória SC e SC Braga conhece este domingo o 159º capítulo da sua história. Razão mais do que suficiente para nos levar ao terreno e auscultar o sentimento nos dias que antecedem o embate nas freguesias de Morreira e São Lourenço de Sande, região fronteiriça entre os concelhos.
Num duelo que pode ser encarado como a representação moderna de um atrito quase milenar, com origens na dificuldade dos clérigos vimaranenses - em tempos remotos - em aceitar ordens do Arcebispo bracarense, esta ligação ríspida não cessou com o tempo.
As motivações políticas do século XIX, em virtude da nomeação da antiga Bracara Augusta como capital de distrito, deram seguimento ao conflito inicial, até esta dinâmica ancestral concentrar os ingredientes neste dérbi apaixonante e de inigualável orgulho para as gentes do Minho.
Com a Nacional 101 como via comum entre duas cidades que se interlaçam social, económica e culturalmente, o tráfego rodoviário foi, talvez, o indicador primário dessas ligações. Pelo caminho, graffitis afetos aos clubes, espalhados de forma quase ininterrupta pelas paragens de autocarro locais, começavam a indicar uma espécie de rota sagrada, levada a cabo pelos fiéis à Romaria mais importante do ano 2025.
Por fim, chegados à zona limítrofe entre os concelhos, o Café Mercadinho São Pedro foi o primeiro ponto de referência. À face da estrada, e entre curvas suficientemente sinuosas para deixar o mais assíduo dos clientes de pestana bem aberta para arriscar uma travessia até às instalações do estabelecimento, encetámos os contactos, tão necessários como naturais.
Com o primeiro café da tarde como rastilho para uma autêntica conversa de balcão com João Proença - proprietário do local -, boas histórias fertilizaram com o ecoar de cada palavra.
«Tenho clientes vitorianos e clientes bracarenses todos os dias!», exclamou prontamente, antes de desmistificar a dinâmica de convívio entre adeptos no seu local de trabalho: «Convivem muito bem. Claro que vão sempre haver aquelas conversas mais picadas, mas não tanto como antigamente.»
Visivelmente satisfeito pela coexistência sã entre adeptos, João lá nos admitiu a sua preferência lógica: «Nasci em Braga, vivo em Braga... vou apoiar quem?»
Cauteloso ao admitir que «tudo é possível» quanto ao jogo de domingo, a perceção das idas ao Municipal serviram de amostra para resumir parte da época dos Gverreiros: «A equipa e os adeptos não sentem segurança... O futebol português este ano está um bocadinho abaixo [do nível] e isso nota-se nas competições europeias.»
As recordações da passagem pelas camadas jovens dos arsenalistas foram também inevitáveis, instantes antes da entrada em cena de um novo interveniente: «Joguei nos juvenis com o Serra, o Dito e o Toni Conceição... O futebol agora é diferente. Antes, dar uma cabeçada numa bola pesada até atordoava, agora parecem de papelão. O pulo que o SC Braga deu é estrondoso. Hoje em dia, é das melhores academias do mundo, por exemplo. Tudo mudou muito e ainda bem!»
Garantindo que o gosto pelo SC Braga «é de nascença», Manuel Silva, cliente assíduo da casa, quebrou o gelo e entrou na conversa com uma recordação bem longínqua: «O meu pai fazia o percurso Morreira -Braga no transporte de materiais e a minha falecida mãe carregou muita pedra para o antigo Estádio 1º de Maio.»
Num tom de voz cenicamente acompanhado pela sonoridade saída da televisão - quase que a pautar com algum dramatismo o episódio -, o septuagenário não deixou escapar a mágoa trazida desde há cinco décadas: «Era sócio desde nascença, mas depois fui para a tropa e eles não perdoaram... Fui para Angola e quando cá cheguei fui ter ao estádio e queriam que eu pagasse as quotas e que mudasse o número do cartão...Nunca mais lá fui. Domingo vejo o jogo pela televisão»
«Desde a história do caixão que o Vitória a mim.... Para aí há 30 anos [época 1969/70], usaram um caixão Braga para simbolizar a descida do SC Braga», sintetizou, com alguma aversão, o bracarense natural de Morreiros.
Terminada a conversa do lado vermelho da rivalidade, e com a memória preenchida pelas histórias contadas, seguiu-se a curta viagem à freguesia vizinha, poucos quilómetros abaixo, em São Lourenço de Sande, Guimarães. Por entre uma zona residencial com um dinamismo caraterístico da região, o Café do Bilinho foi como visitar um santuário, repleto de crenças e artefactos.
De acessibilidade máxima, Miguel, popularmente conhecido por Billinho, contextualizou-nos a realidade vivida naquela freguesia vimaranense. Com 80 a 90 por cento dos adeptos locais afetos ao Vitória SC, o jogo de domingo não será pretexto para encher o estabelecimento, dada a elevada e habitual afluência que se prevê no Estádio D. Afonso Henriques. Dentro dos restantes 10 por cento de pessoas da região que estima serem de outros clubes, outra curiosidade foi esclarecida: a existência de adeptos afetos ao SC Braga.
Sem possibilidade de se deslocar ao recinto, por força da responsabilidade laboral, Bilinho admitiu seguir o certame a partir da TV e que terá no local os filhos - avidamente ensinados pelos primos mais velhos - como representantes. Enquanto isso, e como conversa puxa conversa, um verdadeiro enxoval de cachecóis e camisolas, memórias de Conquistadores e Gverreiros, foi-nos mostrado pelo antigo emigrante, em tempos radicado em França.
Memórias imortais refugiadas na maturidade e vigor dos 88 anos de Manuel Matos, indefetível vitoriano que surgiu no passeio imediatamente à frente do espaço.
«"Senhor Manuel, tudo bem? Está aqui este senhor para lhe pedir dinheiro"», exclamou Bilinho - incessante produtor de boa disposição - à medida que nos dirigíamos na direção de uma figura para si tão familiar. Ambiente criado e pretensão explicada, foi hora de destrancar um baú cheio de ouro mental.
Afastado de uma deslocação ao anfiteatro vitoriano desde finais dos anos 80, o motivo desta distância suplantou qualquer expetativa.
«A Académica veio jogar a Guimarães e, quando marcaram, duas ou três pessoas que estavam à nossa beira bateram palmas e um amigo meu puxou da pistola. Nunca mais lá fui, mas sigo todos os jogos do Vitória», revelou assente por entre uma vivacidade e paixão invulgares.
«Esta época fomos ganhar a Braga na quinta jornada... Domingo é para fazer o mesmo, mas agora falta muita gente», sublinhou Manuel, em alusão à saída de nomes como Manu Silva, Alberto Costa ou Kaio César: «O SC Braga está mais poderoso, agora o Vitória SC tem de agarrar o lugar na Conference League.»
Incapaz de escolher o momento preferido perante o velho rival minhoto, Manuel Matos assegurou ficar satisfeito em qualquer jogo que o seu clube vença os arsenalistas: «Contente ficava se o Vitória SC vencesse todos os jogos ao SC Braga. Devia ganhar sempre, não?»
A fechar a conversa com o zerozero, a Taça de Portugal ganha ao Benfica mereceu uma última analepse com direito à referência que introduziu esta reportagem: «Fui para as Taipas, comprei três frangos assados, comecei a beber com mais um colega e vim embora sem os frangos. Nesse dia, estive também na Sé de Braga e rezei muito para o Vitória SC ganhar. E ganhou mesmo, depois de ter estado a perder!»
Rivalidade, fé e paixão. Sentimentos efervescentes no sangue dos nativos da região, que deverão complementar os instintos e competências futebolísticas dos homens de confiança de Luís Freire e Carlos Carvalhal. Mais do que os números citados na tabela, capazes de suscitar as mais pertinentes comparações, o Dérbi do Minho deixa uma certeza de dimensão e complementaridade entre os dois gigantes da região.