Trivela
·02 de dezembro de 2022
Trivela
·02 de dezembro de 2022
Esse jogo era dele. Também de Granit Xhaka, mas ainda mais dele. Pouco importa que sua carreira venha em declínio, com seguidos problemas físicos. Xherdan Shaqiri, cheio de vontade, se reencontrava com a Sérvia quatro anos depois. Tornou-se o principal alvo da vingança almejada pelos adversários, pelo gol decisivo aos 45 do segundo tempo na Rússia e pela águia de duas cabeças que soou como óbvia referência geopolítica. Dessa vez, o ponta não quis fazer o gesto. Mas teve gol, com pedido de silêncio diante das vaias e polegares apontados para seu nome nas costas. Teve muito mais, numa senhora atuação do camisa 23, de arrancada fulminante no lance do segundo tento e de passe cheio de categoria na construção do terceiro. A Suíça derrotou a Sérvia por 3 a 2, e Shaqiri deu mais motivos para ser odiado pelos oponentes. Na bola, mas também para reavivar a lembrança do que provocou há quatro anos.
As chagas entre Shaqiri e a Sérvia são daquelas que se levarão para o resto da vida. O atacante nasceu na antiga Iugoslávia, no território reivindicado por Kosovo, em família de etnia albanesa. Com apenas meses de idade, o garoto foi levado pela família rumo à Suíça, em busca de melhores condições de vida e em fuga da guerra que estourava. As cicatrizes são ainda mais vivas numa disputa que ainda não acabou, com sérvios e kosovares reivindicando o que defendem como direito. E mesmo com uma vida construída longe de sua terra natal, o camisa 23 se tornou um dos principais representantes da causa através do futebol.
Shaqiri foi uma jovem aposta da Suíça na Copa de 2010, mal saindo do banco. Em 2014, o ponta aparecia como um dos principais nomes dos alvirrubros e se destacou, com uma tripleta diante de Honduras. Na sua chuteira, apareciam as bandeiras de Kosovo e da Albânia. Já quatro anos depois, em 2018, o camisa 23 daria uma assistência contra o Brasil. Nada comparado ao que fez diante da Sérvia. Aleksandar Mitrovic abriu o placar. Granit Xhaka empatou e realizou o gesto da águia de duas cabeças, presente na bandeira da Albânia, ele também um albanês-kosovar. Mas, até aquele momento, o empate não era tão satisfatório aos suíços. Veio Shaqiri e fez a águia voar mais alto, aos 45 do segundo tempo. Virou herói em Kosovo, odiado na Sérvia,
Os últimos quatro anos tiveram altos e baixos para Shaqiri. Ele conseguiu uma transferência para o Liverpool e até começou bem, mas seria coadjuvante nas conquistas da Champions e da Premier League – com um destaque na célebre virada contra o Barcelona. Porém, lidando com problemas físicos, o atacante acabaria esquecido nos Reds e também não deu certo no Lyon. Sua última temporada já seria distante do mais alto nível competitivo, levado aos Estados Unidos pelo Chicago Fire.
O que não se perdeu foi o peso de Shaqiri na seleção da Suíça. O atacante, que já tinha deixado eternizado um golaço de voleio na Euro 2016, seria importante na excelente campanha na Euro 2020. Foram três gols e uma assistência na caminhada inédita até as quartas de final. O veterano sobe nas listas de jogadores com mais partidas pela equipe nacional e, aos 31 anos, parece pronto a tomar o recorde. Antes disso, ainda pôde se tornar o segundo suíço a disputar quatro Copas do Mundo. Não vinha ao Catar com as expectativas de outrora, mas sua liderança é inegável. E havia um assunto a resolver com velhos conhecidos.
A estreia contra Camarões valeu o destaque a Shaqiri. Ele entregou o gol para Breel Embolo marcar, num emblemático tento do centroavante contra seu país natal. Diante do Brasil, o veterano seria um desfalque. Sentiu dores e não pôde incomodar o principal adversário do grupo. Melhor se resguardar para a partida que ele realmente queria disputar. Mais um confronto contra a Sérvia. E com provocações do outro lado, depois que uma bandeira reivindicando a soberania de Kosovo foi fotografada nos vestiários dos oponentes. Shaqiri não deixaria barato, mas agora só na bola.
A partida chamou Shaqiri. Era um jogo aberto, cheio de alternativas ofensivas, mas ainda muito físico. Tudo o que o ponta gostaria, com sua velocidade combinada com o corpo parrudo de ginasta. A explosão de Shaqiri primeiro viria em forma de gol, aos 20 minutos. Recebeu o passe de Djibril Sow e contou com um desvio para anotar. Nada que diminuísse a alegria. E se estavam ansiosos por sua comemoração, dessa vez ele se limitou a botar o indicador em riste sobre a boca, pedido de silêncio às vaias incessantes que recebia. Também apontou o seu nome, o nome que os sérvios tanto conheciam. Eles, entretanto, não deixariam barato. Viraram. Inclusive, forçando um erro do camisa 23 para o contragolpe do segundo gol.
A defesa da Sérvia, por sua vez, era um convite a um jogador rápido como Shaqiri. Sobravam espaços nas costas dos alas e a defesa lenta tinha dificuldades para acompanhar. Foi isso que o ponta explorou no segundo gol, o do empate fundamental. Partiu em velocidade pelo meio e todo mundo pareceu querer pará-lo. Esqueceram-se dos outros. Com isso, Shaqiri passou a Sow. Depois a bola chegou a Silvan Widmer, sozinho na direita, que cruzou para Breel Embolo também desimpedido no centro da área. O centroavante, aliás, era outro com sangue nos olhos. Segurava os zagueiros sérvios no muque, com um trabalho incrível no pivô.
O segundo tempo se abriu à Suíça. E quem vislumbrou um caminho foi Shaqiri. Ao receber o passe de Embolo, o ponta apresentou também seu refinamento. Um toque cheio de categoria por baixo da bola, para superar a defesa por cobertura e habilitar Ruben Vargas. O companheiro ainda ajeitou de calcanhar, deixando tudo mais bonito antes da conclusão de Remo Freuler. O placar se consolidava e os helvéticos não deixariam escapar. Não seria o jogo perfeito de Shaqiri, também com uma boa chance perdida no primeiro tempo. De qualquer forma, pelas circunstâncias, ele fez muito. Era sabido que ele não aguentaria tanto e, aos 23 minutos, acabou substituído. Ouviu vaias massivas, talvez até mais saborosas que os aplausos, pelas circunstâncias.
Shaqiri é um símbolo da seleção da Suíça. Supera os 110 jogos, participou de grandes campanhas, marcou gols em três Copas consecutivas. O país que o acolheu se orgulha do craque que criou. E depois da partida ele retribuiu, chacoalhando a própria bandeira helvética. Isso não anula o que o atacante representa a albaneses e kosovares. Mesmo que não tenha se unido à seleção de Kosovo após a aprovação da Fifa, o atacante consegue fazer até mais numa Copa do Mundo. Talvez seus gols sejam mais comemorados em Pristina do que em Genebra. E ele entrega. Decidir pela segunda vez num duelo desse tamanho é algo massivo, especialmente num Mundial. Não teve comemoração da águia, mas, depois de mais esse jogo, talvez algum dia tenha estátua em alguma cidade kosovar.
(JAVIER SORIANO/AFP via Getty Images/One Football)