Calciopédia
·16 de maio de 2021
Calciopédia
·16 de maio de 2021
Não há dúvidas de que Aldo Spinelli se trata de um infiel. Ligado ao setor naval, arrumou amores em pelo menos dois portos italianos e, neles, continuou a deleitar-se em atos de perfídia, decepcionando torcedores após glórias e quebrando contratos com dezenas de treinadores. Entre altos e baixos, foi assim que ele comandou Genoa e Livorno, entre as décadas de 1980 e 2020.
Influente empresário, Spinelli nasceu em janeiro de 1940 na cidade de Palmi, localizada na região metropolitana de Reggio Calabria. Filho de uma dona de casa e de um contramestre de navio, Aldo começou a trabalhar muito cedo na marinha mercante – ramo bastante difundido no sul da Itália, visto que a região tem mais de 10 portos relevantes. Com o tempo, adicionou áreas afins à sua expertise.
O comendador calabrês é proprietário de uma empresa de logística com foco em áreas portuárias da Itália. A firma começou especializada no transporte de madeira, mas logo cresceu quando Spinelli percebeu que o futuro do setor estaria nos contêineres e adaptou os semirreboques da companhia para esse tipo de serviço. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, a corporação expandiu sua influência nos transportes, investindo também em linhas férreas e na compra de terminais portuários e armazéns, além de expandir a sua frota de caminhões, o que permitiu viagens internacionais.
Dentre as bases portuárias que o Grupo Spinelli atua estão as de La Spezia, Nápoles, Salerno, Taranto, Gioia Tauro, Cagliari, Veneza, Gênova e Livorno. O empresário, conhecido por sua vaidade, não esconde porque decidiu investir no futebol, escolhendo os times de Genoa e Livorno para isso. “O futebol traz popularidade e isso me agrada”, assumiu, sem meias palavras, ao site The Medi Telepragh, especializado em logística e navegação mercantil no Mediterrâneo.
Claro, a raiz da escolha do comendador pela aventura no esporte também contava com um pequeno componente sentimental. Spinelli tinha jogado futebol de forma amadora até os 17 anos, quando percebeu que, devido à sua falta de qualidade, não ganharia dinheiro. Assim, como tinha interesse no mundo da bola e queria aproveitar de suas vantagens – fama, dinheiro e influência –, depois que enveredou por outros caminhos e fez fortuna, resolveu se reaproximar do jogo.
A aventura de Spinelli no futebol começou em 1985, quando o empresário adquiriu o Genoa, que atuava na Serie B. Durante o período em que o comendador esteve à frente do clube, os grifoni viveram a sua melhor fase no pós-Segunda Guerra Mundial.
Sob as ordens de Spinelli, o Genoa se reestruturou e retornou à elite em 1989, após garantirem a primeira posição da Serie B. O dirigente uniu uma boa prospecção de talentos nas categorias inferiores da Itália a algumas contratações de estrangeiros de alto nível – Branco, Carlos Alberto Aguilera e Tomás Skuhravy – e entregou o comando do elenco a Osvaldo Bagnoli na temporada 1990-91.
Sob as ordens do técnico, que já fora campeão italiano pelo Verona, o time da Ligúria terminou sua campanha num excelente quarto lugar. Além disso, alcançou outros grandes feitos: se manteve invicto em casa por toda a campanha e vencendo jogos contra grandes adversários, como Juventus, Inter, e Roma, Lazio, bem como a sua rival local – a Sampdoria, que acabaria conquistando aquele scudetto.
Essa notável temporada na Serie A gerou resultados ao clube, uma vez que os grifoni se classificaram para a Copa Uefa. Em 1991-92, o time lígure fez bela figura na competição europeia: caiu nas semifinais, após ser eliminado pelo Ajax, que se sagraria campeão sobre o Torino. Porém, antes de ser vetado na penúltima fase do torneio, o Genoa passou pelo Liverpool. Na ocasião, se tornou a primeira equipe italiana a vencer os Reds em sua casa, o Anfield. Na Serie A, porém, o número limitado de jogadores no elenco e o extenso calendário de jogos (e suas consequentes viagens) pesou: o desempenho não foi bom e o Vecchio Balordo ficou na metade inferior da tabela, ainda que distante dos rebaixados.
Nas temporadas seguintes, o Genoa, já sem Bagnoli, manteve-se na metade inferior da tabela. Era difícil mesmo competir na duríssima Serie A da época, mas a torcida foi percebendo que algo havia mudado no padrão administrativo de Spinelli. Em 1994-95, então, o clube voltou a ser rebaixado para a Serie B, após perder em disputa de pênaltis para o Padova, no jogo de desempate que existia quando dois times terminavam o campeonato com o mesmo número de pontos.
Depois do rebaixamento, os genoveses ainda experimentaram um gostinho de alegria e sucesso internacional graças ao título da Copa Anglo-Italiana, conquistado sobre o inglês Port Vale, batido pelo placar de 5 a 2 – e com direito a tripletta de Gennaro Ruotolo. Essa foi a última conquista dos grifoni sob a presidência de Spinelli, que não conseguiu devolver o Genoa à elite. Após instaurar uma política de contratações confusa e, mesmo assim, ter visto os rossoblù ficarem apenas um ponto atrás do último promovido em 1997, Aldo decidiu mudar de ares. O cartola cedeu aos protestos da torcida, vendeu o clube e embarcou para Livorno, a menos de 200 km de Gênova.
A curiosa participação de Spinelli no Livorno se inicia em 1999. Curiosa porque o clube labronico tem torcida abertamente de esquerda, mas isso não significa que esteja imune a interferências econômicas de entes privados, como a injeção de dinheiro por parte de um magnata. Na época, inclusive, os torcedores entenderam que o projeto poderia ajudar a agremiação, até porque o cartola tinha um discurso que propunha um futebol menos desigual.
O cartola não ficou apenas nas palavras e tentou ser um agente promotor de mudanças nesse sentido. Lutou, por exemplo, por uma divisão mais igualitária dos direitos televisivos e por uma participação popular no futebol local. Durante um tempo, seu prestígio fez com que a torcida nem se importasse muito com a pintura dos assentos do estádio Armando Picchi de amarelo – cor da sorte de Spinelli, que nada se parece com o amaranto livornês. Entretanto, o presidente não escapou de críticas, como quando grupos de ultras toscanos tentaram romper a tribuna de honra para linchá-lo. A relação entre as organizadas e o mandatário foi bastante tumultuada ao longo de duas décadas, com períodos de trégua.
Spinelli adquiriu o Livorno enquanto o time havia caído para a terceira divisão. Sob sua influência, o clube retornou à segundona em 2002. E, após três temporadas (com um generoso patrocínio do Banco Carige, de Gênova, do qual o cartola era acionista), conseguiu o acesso à Serie A, o que não ocorria havia 55 anos. O feito histórico, naturalmente, animou os torcedores toscanos. A ascensão teve tanto prestígio que os festejos pelo retorno contaram até com a presença do presidente italiano na época, Carlo Azeglio Ciampi, cidadão de Livorno e torcedor da equipe em sua infância.
Embora muitos previssem o rebaixamento do time logo após subir para a elite, o Livorno conseguiu se manter na Serie A, terminando em nono lugar na temporada 2004-05. A ótima campanha teve a participação decisiva de Cristiano Lucarelli, que fez 24 gols e faturou o prêmio de artilheiro naquela edição do torneio, superando nomes como Andriy Shevchenko e Adriano. É preciso destacar que o feito do centroavante tem o dedo de Spinelli, pois o empresário foi o responsável por apostar no jogador, nascido em Livorno, após temporadas muito ruins no Torino.
Ainda na Serie A, o Livorno de Spinelli conseguiu terminar na sexta posição, após os desdobramentos do Calciopoli, e comemorou a sua segunda melhor campanha na elite italiana em 2005-06. Ganhou, também, o direito de participar da Copa Uefa seguinte, na qual chegou até as oitavas de final, à revelia do cartola: de forma surpreendente, ele preferia que o time fosse logo eliminado, para poder se concentrar totalmente na luta contra o rebaixamento. Depois da queda para o Espanyol, os amaranto asseguraram a permanência. Porém, sem Lucarelli – negociado com o Shakhtar Donetsk –, os labronici amargaram a lanterna e o descenso em 2007-08.
Naquela temporada, mesmo perdendo o seu principal jogador, o clube fez contratações notáveis, como as de Francesco Tavano, Diego Tristán e Vikash Dhorasoo, mas só o primeiro teve um rendimento aceitável. Com elenco bem mais modesto, na época seguinte o time terminou em terceiro lugar na Serie B e garantiu novamente o acesso à elite do Italiano. Em efeito ioiô, voltou a cair, só retornou em 2013 e, um ano depois, já estava novamente na categoria inferior. Os descensos de 2008, 2010 e 2014 foram sacramentados com a última posição do campeonato, deixando bem claro que Spinelli não fez o suficiente para montar plantéis competitivos. O presidente pecava na falta de investimentos para a contratação de atletas, a formação de jogadores na base e estruturação de uma rede eficiente de olheiros.
Essas idas e vindas geraram muito desgaste com a torcida do Livorno e fizeram com que Spinelli começasse a pensar em sua venda. Depois de muita hesitação, o presidente passou a escutar propostas a partir de 2014, após o rebaixamento, mas, por anos a fio, nenhum negócio avançou – e o clube foi definhando. Até que, em 2020, após 21 anos à frente do amaranto, o comendador anunciou a sua saída do mundo futebolístico e a venda da agremiação para Rosettano Navarra, ex-proprietário do Frosinone. Quase falido, o time toscano foi rebaixado para a Serie D em 2021.
Embora tenha obtido títulos pouco expressivos pelo Genoa e não tenha sido vitorioso no Livorno, Spinelli deixou seu legado no esporte. Assim como em seus negócios particulares nos ramos portuário e logístico, o empresário também foi pioneiro em alguns aspectos de sua carreira como presidente, como na já citada proposta de maior participação popular no futebol italiano.
Aldo Spinelli também foi responsável por promover novidades na Serie A: em 1994, o seu Genoa adquiriu Kazu Miura e abriu o campeonato ao mercado asiático, uma vez que o japonês se tornava o primeiro atleta do continente a jogar na Itália. Ademais, o calabrês deu chances a talentos: na Ligúria, ao já citado Ruotolo e também a Stefano Eranio e Vincenzo Torrente; na Toscana, ao já mencionado Lucarelli, a Giorgio Chiellini, Alessandro Diamanti e ao técnico Walter Mazzarri.
Nesses 35 anos de vida dedicados ao futebol, Spinelli perdeu muito dinheiro e se envolveu em diversos conflitos com jogadores e treinadores. Em 2007, entrou em rota de colisão com Lucarelli, autor de 20 dos 41 gols do Livorno na Serie A 2006-07, porque o atacante havia sido contrário à demissão do técnico Daniele Arrigoni. O capitão chegou a admitir publicamente que deixaria o clube ao final daquela temporada. Cumpriu a palavra e, da Ucrânia, viu o time amaranto cair no campeonato seguinte.
O presidente era conhecido por ser uma máquina de moer treinadores. Nos seus 12 anos de Genoa, efetuou 14 trocas no comando; nos 21 de Livorno, foi ainda mais radical e assinou incríveis 42 demissões. O vulcânico Spinelli costumava dar pouca liberdade de ação para os técnicos: queria que o dinheiro que investia fosse utilizado da forma que melhor entendesse e, por isso, não era raro que tentasse interferir na gestão dos seus contratados. Houve vezes em que contratou profissionais inexpressivos só para tê-los como fantoches que obedecessem às suas ordens e satisfizessem os seus desejos.
A instabilidade nos bastidores das agremiações que dirigiu motivou muitas das frequentes rusgas com os ultras. Porém, Spinelli era tão especializado em arrumar problemas que conseguiu ser contestado pela torcida do Alessandria na única temporada em que teve o controle do clube. Como Aldo já era o proprietário do Livorno, a presidência ficou com o filho Roberto, seu testa de ferro.
O calabrês adquiriu o Alessandria em 2000, quando o time do Piemonte era um dos concorrentes do Livorno na Serie C1. O óbvio conflito de interesses fez a procuradoria federal abrir um inquérito contra a família e também gerou fortes protestos dos torcedores alessandrinos. Afinal, enquanto os labronici brigaram pelo acesso, os grigi foram rebaixados para a quarta divisão – o que denotava uma disparidade de atenção dada por Spinelli a equipes que estavam na mesma categoria. No fim das contas, a hostilidade das organizadas e o processo na justiça desportiva levaram o empresário a negociar o clube piemontês, à beira da falência. Não sem antes demitir dois treinadores, é claro.
Ao longo de sua trajetória como dirigente, Spinelli também mostrou uma espécie de cafajestagem institucional. Volta e meia, cansava do esporte ou enjoava de ocupar a presidência de um clube de futebol, pelos distúrbios que o cargo lhe trazia: quando isso acontecia, ameaçava largar tudo. E não largava.
Os torcedores de Genoa e Livorno também se cansaram das bruscas reduções de investimentos que aconteciam quando o passional Spinelli ficava desgostoso com o esporte. Junto com os momentos ruins surgiam promessas que mais pareciam palavras ao vento, já que não costumavam ser cumpridas. Num dos últimos momentos de sua gestão em Gênova, por exemplo, os ultras fizeram greve e, após o retorno à elite não ser concretizado, tocaram o terror: arremessaram de tudo no gramado do Marassi, destruíram as instalações do estádio e, por duas horas, impediram que o plantel deixasse os vestiários, até que a polícia controlasse a situação. Aldo deixara a tribuna de honra bem antes disso tudo, no meio do primeiro tempo da insuficiente vitória por 4 a 1 sobre o Palermo.
Em Livorno, a história se repetiu e até se intensificou. Os protestos aconteceram ao longo de anos e Spinelli costumava discutir frontalmente com os torcedores mais exaltados, geralmente no próprio estádio. O fundo do poço foi a já citada malsucedida tentativa de linchamento, mas o Google é bastante didático quanto à frequência das manifestações. A busca pelos termos “contestazione”, “Spinelli” e “Livorno” retorna cerca de 104 mil resultados – a troca da primeira palavra por “proteste” na pesquisa entrega aproximadamente 62 mil.
Para o bem e para o mal, o cartola presenciou muita coisa no futebol italiano. Aos 80 anos, deixou de dedicar-se à uma de suas paixões que lhe custou tempo, dinheiro, negócios e amizades, além de dar-lhe cabelos brancos. Hoje, dedicando-se exclusivamente ao Grupo Spinelli, Aldo tem a certeza de que tudo valeu a pena. Afinal, a popularidade que ele tanto almejava foi obtida: toda a Itália sabe quem é Aldo Spinelli. Uma parte do mundo também.
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