Calciopédia
·16 de março de 2020
Calciopédia
·16 de março de 2020
Jogador de futebol usando óculos em campo é fato raríssimo. Certamente, o volante holandês Edgar Davids, que atuou pelos três gigantes da Itália, é o exemplo mais conhecido. Os mais nerds em matéria de futebol também podem lembrar de Joop van Daele, zagueiro – curiosamente, também dos Países Baixos – que foi campeão mundial pelo Feyenoord, em 1970. Muito antes deles, porém, o ponta italiano Annibale Frossi marcou época com suas lentes espessas, conquistando títulos pela Inter e pela seleção.
Annibale não foi moldado para ser atleta. Nascido no seio de uma família abastada dos arredores de Údine, cresceu num vilarejo circundado pela riqueza da fauna e da flora local, com bosques reconhecidos pelas trufas que podiam ser colhidas da terra. O garoto franzino, baixinho, ruivo e de miopia aguda estava destinado a ser médico – como o falecido pai, Cesare Giuseppe Frossi. Assim desejava dona Rosina Concina, sua mãe. Porém, o jovem Annibale rapidamente passou de “pel di carota” (ou “cenourinha”, em tradução livre) para “piè veloce”, por causa da velocidade e da destreza com os pés que demonstrava no futebol jogado com os colegas da escola, e a paixão pelo esporte lhe subiu à cabeça.
Em 1928, quando tinha 17 anos, Frossi foi descoberto por um olheiro da Udinese, que na época disputava a terceira divisão. O físico frágil do ponta não impressionava. Muito menos pelo fato de que usava óculos fundo de garrafa presos com um elástico na nuca. Mas bastou rolar a bola para que o funcionário do clube entendesse do que Annibale era capaz: para começar, chegava a correr 100 metros em 11,4 segundos, e isso com a bola nos pés. Apesar de a miopia lhe prejudicar nas jogadas aéreas, Frossi compensava com sua habilidade, futebol insinuante e boa capacidade de finalização. Assim, acabou recrutado pelo time friulano.
A passagem do atacante pela Udinese foi célere. Em dois anos pelos bianconeri, o ponta direito chegou a jogar até como centroavante e contribuiu tanto para o acesso à Serie B quanto para a permanência dos friulanos na segundona, em 1930-31. Frossi foi um dos principais artífices dessa segunda campanha, com 10 gols marcados. O jogador chamou a atenção do Padova, que almejava o acesso à elite e, aos 20 anos, lhe veio a vontade de ser independente: aceitou a proposta.
Annibale, contudo, não era maior de idade segundo as leis italianas da época – a maioridade civil se conquistava aos 21. Quando dona Rosina Concina soube da transferência, se assustou e mandou a polícia ir buscar o filho em Pádua: queria que, pelo menos, ele concluísse os estudos no liceu. Frossi aceitou a condição e se dividiu entre a campanha na segundona e as aulas no colégio. Mesmo se dividindo entre duas funções, o atacante marcou nove gols e ajudou um time que também tinha o zagueiraço Alfredo Foni e o meia Mario Perazzolo a ficar com o vice-campeonato da categoria, o que lhe garantia uma vaga na Serie A.
Frossi estreou na elite em 1932-33, mas não foi titular na campanha de permanência do Padova na categoria. Na temporada seguinte, o jogador teve de cumprir serviço militar obrigatório no sul da Itália e foi emprestado ao Bari, da Serie B. Pelos biancorossi, o atacante anotou 12 gols em 30 jogos e, por pouco, não comemorou novo acesso: os apulianos ficaram com a segunda posição no play-off que definiu a promoção da Sampierdarenese. Annibale retornou ao Padova no fim da temporada com a incumbência de disputar outra edição da segundona. Seus 14 gols salvaram os biancoscudati do pulo no abismo que seria um rebaixamento à terceira divisão.
Em 1935, era a Itália que dava mais um passo rumo ao precipício. A ditadura fascista de Benito Mussolini declarou guerra à Etiópia – território que o reino italiano já queria anexar desde o fim do século XIX – e deslocou tropas para o norte da África. Frossi era cabo da Gran Sasso, um dos batalhões de infantaria designados para o conflito, e foi convocado. A contragosto, pois não apoiava o regime, o jogador estava a bordo do navio da marinha que zarparia de Nápoles quando foi salvo pela corrupção.
A qualidade técnica de Frossi era cobiçada por Adelchi Serena, membro do alto escalão do Partido Nacional Fascista – nos anos seguintes ele se tornaria ministro e, depois, secretário-geral do PNF. Serena foi presidente do L’Aquila, time de cidade homônima da região dos Abruzos, entre 1931 e 1934, até deixar o cargo para se tornar podestà do município. Na qualidade de interventor e autoridade máxima da cidade, não deixava de ter influência sobre um clube aparelhado pelo partido. Sendo assim, negociou diretamente com Annibale: se disputasse a Serie B pelos rossoblù, que vislumbravam o acesso à elite, seria dispensado do exército. Frossi topou.
Pelo L’Aquila, o atacante não conseguiu o acesso – a Valorosa passou longe disso, inclusive –, mas teve sucesso individual. Após 34 jogos e nove gols, chamou a atenção da Inter, que o contratou por apenas 50 mil velhas liras. Frossi também saltou aos olhos de Vittorio Pozzo, técnico da seleção italiana, que estava definindo a lista de jogadores que iriam para a Olimpíada de Berlim. Para atender aos requisitos da época, que previam elencos formados por atletas amadores, Pozzo convocou atletas que estavam matriculados em escolas ou universidades – brecha permitida pelos Jogos. Assim, Annibale rumou à Alemanha como integrante de um forte grupo, que tinha o seu ex-companheiro Foni, Pietro Rava (Juventus), Libero Marchini (Lucchese), Sandro Puppo (Piacenza) e Ugo Locatelli (Brescia).
Na capital da Alemanha nazista, Annibale brilhou ao balançar as redes em todos os quatro jogos da Olimpíada e se sagrar artilheiro da competição, com sete gols. Frossi começou anotando o único do triunfo por 1 a 0 sobre os Estados Unidos, nas oitavas de final, deixou uma tripletta no 8 a 0 ante o Japão e surgiu para definir a vitória por 2 a 1, na prorrogação, contra a Noruega. Na final, a Itália encarava a Áustria, sedenta pela revanche da semifinal de 1934. O friulano de 25 anos, porém, marcou duas vezes (uma no tempo extra) e, por 2 a 1, a Nazionale garantiu o único ouro olímpico de sua história no futebol.
Ao retornar da Alemanha e se instalar em Milão, Frossi cumpriu promessa que havia feito para a mãe e se matriculou numa faculdade de direito. Ao mesmo tempo, realizava um sonho: jogar ao lado de Giuseppe Meazza. Além de Annibale e Beppe, a Inter de 1936 tinha outros grandes jogadores, como o já citado Locatelli, Giovanni Ferrari e Pietro Ferraris. E o friulano chegou mostrando qualidade: atuou em 37 partidas e marcou 15 gols. Foi seu melhor ano em Milão e suas exibições lhe possibilitaram suas últimas oportunidades na seleção.
Nas temporadas seguintes, o cenourinha jogou menos vezes pela Beneamata – considerando, é claro, que não havia substituições na época. Frossi ficou na Inter até 1942 e, por lá, foi bicampeão italiano e conquistou uma Coppa Italia. No ano do título da copa, teve uma boa participação na campanha interista, com três gols em cinco jogos do torneio (incluindo um na final, contra o Novara), e terminou 1938-39 com 14 tentos em 28 aparições.
Aos 31 anos, já formado em direito e estabelecido em Milão, Frossi caminhava para o fim da carreira. Em 1942, com espaço reduzido na Inter, o ponta trocou a Beneamata pela Pro Patria, agremiação de Busto Arsizio, cidadezinha dos arredores da capital da Lombardia. O jogador disputou a Serie B pelos tigrotti e os ajudou a ficar com a quarta posição. Depois veio a II Guerra Mundial e, para ser novamente dispensado do conflito, Annibale acertou um contrato com o Como – outro time lombardo.
Em 1945, com o fim da guerra, o ponta pendurou as chuteiras, mas não os óculos: foi trabalhar como gerente do departamento de fornecimento de uma fábrica da Alfa Romeo. Porém, não durou muito tempo por lá. Um dos principais diretores da sucursal era o presidente do Luino, um pequeníssimo time da região de Varese, e procurava um técnico gabaritado para comandar seus atletas na terceira divisão. Annibale aceitou o convite do seu superior e ficou dois anos no cargo, conseguindo uma surpreendente estabilidade na categoria. Depois, acertou com o Mortara, também da Serie C, e também tirou leite de pedra.
Ao mostrar que era capaz de conseguir bons resultados com times modestos, Frossi ganhou chance no Monza – um time mais tradicional, mas que também estava na terceirona. Sob as ordens do ruivo, os brianzolos foram campeões da Serie C em 1951 e tiveram duas temporadas bem tranquilas na segunda divisão. Em 1952-53, a equipe ficou a apenas três pontos de conquistar um inédito acesso à elite do futebol italiano.
No fim de 1953, Annibale Frossi teve sua primeira chance na Serie A. Numa época em que ainda era permitido que um treinador assumisse cargos em diferentes divisões numa única temporada, o ex-jogador se demitiu do Monza para substituir o inglês Jesse Carver no Torino. O friulano teve de administrar o espólio de um clube que ainda não havia se recuperado da Tragédia de Superga e que, de multicampeão nacional, passara a brigar contra o rebaixamento. Frossi, contudo, foi hábil o suficiente para conduzir os grenás a três salvações tranquilas.
A competência do treinador tinha dois segredos. O primeiro era o grau de minuciosidade com o qual preparava as partidas, que lhe rendeu o apelido de “Dottor Sottile” – “doutor caprichoso”, em tradução livre. Frossi também foi um inovador ao ser um dos pioneiros na adaptação do sistema (esquema tático dominante na época) a um padrão de jogo que antecipava a função do falso nove, e que ficou famoso com a Hungria de 1954. Annibale, porém, era um defensivista. Ele sustentava ideias pitorescas, como a de que “a partida perfeita termina em 0 a 0”. Para o friulano, o resultado seria a expressão de que ambos os times em campo tiveram sucesso em suas propostas de jogo.
Nas década de 1950 e 1960, Frossi se dividiu entre as funções de treinador, olheiro e diretor técnico. Enquanto estava no Torino, também atuava como observador para a seleção italiana e como comissário da Nazionale da Serie B. Em 1956, voltou à Inter para atuar como dirigente, mas também dirigiu o time à beira do campo após a demissão de Luigi Ferrero.
Em 1958, Annibale passou ao Napoli de Achille Lauro, onde não teve liberdade para trabalhar. Após ser “rebaixado” do cargo de técnico para o de olheiro, chegou a recomendar a contratação de jovens como Armando Picchi e Gianni Rivera, mas não foi atendido pelo mandatário. Os dois virariam craques nos anos seguintes, ao passo em que Frossi ficava perto de deixar o esporte. Após passagens por Genoa (séries A e B) e Modena (elite), o friulano encerrou a carreira na Triestina, bem perto de onde nasceu. Os alabardati foram rebaixados para a terceirona com Frossi, em 1965, e o comandante até iniciou a campanha com o time na Serie C, mas se aposentou após ser demitido.
Fora dos campos, Frossi ainda teve uma longa carreira como jornalista. O friulano se tornou um grande amigo do célebre Gianni Brera e trabalhou diariamente nas redações de Corriere della Sera e de Il Giornale, tanto como colunista quanto como analista tático. Depois de escrever belas páginas também no jornalismo, continuou vivendo em Milão até falecer, aos 88 anos, vítima de uma pneumonia. Uma das justas homenagens póstumas ao ex-jogador ocorreu na cidade que presenciou o seu desabrochar. Annibale Frossi é o nome de uma das ruas que dão acesso ao estádio Friuli, da Udinese.
Annibale Frossi Nascimento: 6 de julho de 1911, em Muzzana del Turgnano, Itália Morte: 26 de fevereiro de 1999, em Milão, Itália Posição: atacante Clubes como jogador: Udinese (1929-31), Padova (1931-33 e 1934-35), Bari (1933-34), L’Aquila (1935-36), Inter (1936-42), Pro Patria (1942-44) e Como (1945) Títulos como jogador: Ouro Olímpico (1936), Serie A (1938 e 1940) e Coppa Italia (1939) Carreira como técnico: Luino (1946-48), Mortara (1948-49), Monza (1949-53), Torino (1954-56), Inter (1956-57), Genoa (1958-59 e 1960-61), Napoli (1959), Modena (1962-64) e Triestina (1964-66) Títulos como técnico: Serie C (1951) Seleção italiana: 5 jogos e 8 gols
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