Trivela
·29 de julho de 2022
Trivela
·29 de julho de 2022
Texto publicado originalmente em julho de 2017
Há 15 anos, o Iraque estava submerso em meio ao terror. Se a história do país é conturbada por si, aquele período era mais duro que o comum. Quatro anos antes, os Estados Unidos tinham invadido o território no Oriente Médio e iniciado sua caça a Saddam Hussein – que, por fim, foi executado em dezembro de 2006. E, na intensa disputa política que o conflito envolvia, ninguém sofria mais do que a população. As mortes e as explosões eram cotidianas. A esperança, escassa. Exceto quando ela surgia transfigurada de maneira simples, na forma de uma bola. Em tempos duríssimos aos iraquianos, o futebol serviu de alento. E fez milhões de pessoas deixarem os traumas um pouco de lado para comemorarem a conquista da Copa da Ásia de 2007. Bagdá e as outras cidades do país explodiram juntas, mas desta vez de alegria, em êxtase que mostrava ao mundo uma outra face do Iraque.
A mera presença da seleção iraquiana naquela Copa da Ásia já podia ser considerada um milagre. Por anos, a federação local foi sucateada sob os desmandos de Uday Hussein, filho de Saddam, que controlou a entidade e também o Comitê Olímpico Iraquiano. Era praxe ao filhote da ditadura ameaçar e torturar atletas por conta dos resultados. O carrasco morreu logo em 2003, assassinado nos primeiros meses da invasão americana. O futebol nacional precisava se reconstruir, em uma realidade na qual os recursos eram mínimos e a guerra não dava qualquer trégua para que os atletas se preparassem corretamente. Ainda assim, a presidência ficou nas mãos de Hussein Saeed, braço direito de Uday, acusado de corrupção e responsável por várias ingerências – mas, em compensação, bem relacionado com Joseph Blatter.
O elenco do Iraque nasceu majoritariamente em uma época na qual o país estava em guerra com o Irã. Conviveu logo na juventude com a Guerra do Golfo, bem como com a repressão do regime de Saddam Hussein. Apesar das dificuldades, muitos dos jogadores conquistaram o Campeonato Asiático de Juniores em 2000, aumentando as esperanças. E quando se preparavam para o Pré-Olímpico de 2004, durante um treinamento no estádio nacional, por alguns metros não sucumbiram em um bombardeio americano em Bagdá. Ainda assim, seguiram em frente e conquistaram a classificação aos Jogos Olímpicos. Superaram todas as expectativas em Atenas, alcançando a quarta colocação. Desta maneira, boa parte dos atletas já estava calejada rumo à Copa da Ásia de 2007.
O Iraque conquistou a classificação à Copa da Ásia sem poder jogar em seu território. Passou nas eliminatórias liderando o grupo que também contava com China, Cingapura e Palestina. Venceu dois de seus compromissos como “mandante”, nos Emirados Árabes Unidos. O passaporte carimbado em novembro de 2006, de qualquer forma, não era garantia de tranquilidade à seleção iraquiana. Akram Ahmed Salman, o treinador responsável pela qualificação, sofreu ameaças de morte e ameaçou deixar o cargo durante a campanha, mas foi mantido. Já a gota d’água aconteceu durante a Copa do Golfo, em janeiro de 2007.
O Iraque chegou à última rodada da fase de grupos precisando de apenas um empate contra a Arábia Saudita para avançar às semifinais. O técnico informou aos jogadores que tudo estava combinado com dirigentes sauditas para que a igualdade acontecesse. A armação, porém, não se concretizou e os adversários venceram por 1 a 0, eliminando os iraquianos. Após o jogo, os atletas do Iraque denunciaram seu comandante, enquanto os sauditas afirmaram desconhecer qualquer acordo. O escândalo gerou não só a demissão de Salman, como também derrubou Hussein Saeed, presidente da federação. Foram meses de indefinição até que a federação acertasse em meados de maio com o brasileiro Jorvan Vieira, um nômade da bola, com trabalhos em vários países árabes.
Por conta da guerra, a sede da federação iraquiana havia sido transferida para Amã, na Jordânia – onde viviam mais de 1 milhão de refugiados do país. E, antes da viagem, o fisioterapeuta da seleção foi morto em ataque de um homem-bomba, quando ia buscar em uma agência as passagens. Vários jogadores sequer podiam voltar para o país, sob ameaça de morte, e outros tantos conviviam com as perdas de familiares. O sectarismo colocava a vida de todos em risco, bem como a “riqueza” (relativa) era motivo de ameaças constantes de sequestro. Assim, a preparação oferecida por Vieira precisou ir muito além do futebol. “Quando você não sabe onde fica sua casa, onde suas coisas estão, você está perdido no espaço. Eles estão perdidos por causa da guerra. Passaram por muitas coisas até agora. Os jogadores são muito fortes. Eles sentiram muita dor, então não posso ser apenas treinador, tenho que ser um psicólogo, um pai e um amigo deles. São um ótimo exemplo de unidade para o povo iraquiano”, declarou o comandante, na época.
Diante de todos os percalços, ninguém apostava no Iraque. Nem mesmo a federação local, que comprou as passagens de volta para o fim da primeira fase. Nos amistosos preparatórios, foram apenas duas vitórias em oito jogos. Durante as primeiras partidas, os jogadores só tinham um uniforme, sem poder sequer trocar camisas com os adversários – e os novos fardamentos que chegaram durante o torneio eram de um modelo diferente do usado inicialmente. Assim, a estreia contra a Tailândia (uma das quatro anfitriãs do torneio, dividido também entre Vietnã, Malásia e Indonésia) parecia apenas reafirmar as desconfianças, com o empate por 1 a 1. Contudo, no segundo jogo os iraquianos já demonstraram seu potencial. Derrotaram a favoritíssima Austrália (de Schwarzer, Grella, Bresciano, Kewell, Viduka, Cahill e outros jogadores simbólicos) por 3 a 1. Resultado incontestável sobre o potencial dos azarões. Já na última rodada, o empate por 0 a 0 com Omã acabou sendo suficiente para a classificação, na liderança da chave.
Durante o torneio, Jorvan Vieira precisava focar não apenas na parte tática. Isso, aliás, se tornou um detalhe. A grande fortaleza daquele Iraque era a união em campo. A maneira como cada jogador se esforçava para ajudar o outro. O senso coletivo explica muito do sucesso de uma equipe sem grandes estrelas, cuja base se espalhava por clubes de diferentes países árabes e também por diferentes panos de fundo étnico-culturais – com sunitas, xiitas e curdos compondo o grupo. “Eu tentei unificá-los. Agora, eles estão juntos, compartilham os bons momentos. Não estão lutando ou falando sobre política. Aceitaram o meu jeito. Não sou um mágico, mas eu sei que o futebol pode mudar as pessoas. Quando eu vejo todos trabalhando juntos, isso toca o meu coração, não posso explicar este sentimento. Mas se os resultados não vêm, talvez o problema volte. Eu espero fazer a diferença”, apontava o treinador. O foco era fundamental, até por outros problemas que pintavam, como as dificuldades financeiras ou os entraves com os passaportes durante as viagens entre as diferentes sedes.
Nas quartas de final, o Iraque confirmou sua força ao bater o Vietnã por 2 a 0, sem grandes sobressaltos. Já o maior desafio pintou nas semifinais, diante da Coreia do Sul. O favoritismo era todo dos sul-coreanos, presentes em todas as Copas do Mundo desde 1986 e recheados de jogadores com reputação internacional. Pois os iraquianos seguraram o empate por 0 a 0 durante 120 minutos e venceram nos pênaltis, por 4 a 3. O milagre estava prestes a se concretizar. Se nem mesmo em sua era dourada nos anos 1980 os iraquianos tiveram a chance de erguer a taça da Copa da Ásia, fora da competição por causa de seus conflitos, a decisão na Indonésia representava uma enorme volta por cima. Haveria um reencontro com a Arábia Saudita.
Mas nada seria tão simples ao Iraque. Milhares de pessoas saíram às ruas do país para comemorar a vitória sobre a Coreia do Sul. A brecha para que atos terroristas atacassem a população. Em Bagdá, o ataque de um homem-bomba deixou cerca de 60 mortos e outras dezenas de feridos. Alguns dos jogadores do elenco tinham conhecidos entre as vítimas de tamanha barbárie. Por conta do episódio, os iraquianos consideraram até mesmo abrir mão da final. No fim das contas, decidiriam ir em frente para honrar os falecidos – especialmente após assistirem ao pedido de uma mãe na TV local, urgindo que jogassem em homenagem ao seu filho, um dos assassinados. Afirmou que não enterraria o corpo até que a seleção fosse campeã.
Cerca de 60 mil pessoas lotaram as arquibancadas do Estádio Gelora Bung Karno, em Jacarta. Os iraquianos contavam com sua massa barulhenta e esperançosa, reforçada pelos locais. Os indonésios apoiavam não apenas o conto de fadas comandado por Jorvan Vieira, mas também desaprovavam os sauditas, pelo tratamento desumano que seus compatriotas recebiam quando iam trabalhar no país árabe. Assim, o impulso ao Iraque ganhou força. E o que se viu nos 90 minutos de bola rolando foi a mais pura História, com o triunfo por 1 a 0.
A Arábia Saudita tinha participado de cinco das seis finais de Copa da Ásia anteriores, com três títulos neste intervalo. Todavia, o currículo não surtiu efeito dentro de campo. Treinados por Hélio dos Anjos, os sauditas foram dominados pelo Iraque e pouco ameaçaram. Com criatividade no meio-campo, os iraquianos foram superiores – desta vez, sem a ordem do próprio técnico para que não atacassem. Anotaram o gol lendário aos 28 minutos do segundo tempo, em cobrança de escanteio que o capitão e camisa 10 Younis Mahmoud escorou para as redes. Nem mesmo a vantagem no placar parou os Leões da Mesopotâmia, que seguiram pressionando. O apito final, por fim, ofereceu o alívio por toda a luta dos comandados de Jorvan Vieira. Ofereceu a glória a um povo sofrido e esfacelado.
“O conto de fadas está completo. O time sem uma casa, o time sem um técnico há dois meses, o time que ficou esperando por horas no saguão de um hotel, o time que sofreu para viajar por causa dos passaportes… O time sem esperança que trouxe alegria a essa nação fraturada. O futebol tem sucesso, talvez vocês possam dizer, onde a política falhou. Inacreditavelmente, o Iraque é campeão da Ásia”, definiu muito bem o narrador Simon Hill, após o que se concretizava na frente de seus olhos. Younis Mahmoud ergueu a taça em uma explosão de orgulho que mal pode ser descrita. O atacante ainda receberia o prêmio de melhor jogador do torneio e seria apontado como o 29° melhor jogador do mundo naquele ano, votado na eleição da Bola de Ouro. Chegou a receber propostas da Europa, mas não pôde se transferir por restrições ao seu passaporte. “Este gol não foi marcado por mim, mas por todo o povo iraquiano”, declarou o herói da final, que urgia para o fim da invasão dos Estados Unidos.
Mais importante que o brilho do ouro, entretanto, era a alegria de milhões de pessoas no Iraque. Sunitas, xiitas e curdos esqueciam as suas origens e se abraçavam, movidos pela felicidade em comum. Por um momento, não existiam mais divisões e o medo da guerra não era empecilho para que uma multidão saísse às ruas – contrariando as recomendações das forças de segurança. As imagens eram transmitidas para o mundo todo. Davam um dos maiores exemplos sobre a força que o futebol pode ter, quando muitos também haviam assistido ao terror vivido pelos iraquianos ao longo dos quatro anos anteriores. As balas que ganhavam os céus, desta vez, eram para comemorar. E a festa se espalhava por outras colônias iraquianos, em diferentes países.
“Centenas de milhares de pessoas, em todas as cidades, estão celebrando a vitória. Minha família disse que é algo inacreditável. As pessoas não sabem o que fazer. Elas estão chorando de felicidade. Há trânsito em todos os lados. Isso é extremamente significativo. Eu conversei com um garoto nesta manhã e ele disse: ‘Se o nosso primeiro ministro apenas pudesse aprender com o time…’. Durante os últimos quatro anos, o elenco passou por tantas dificuldades. Eles viveram os mesmos problemas que o povo. Agora, ganharam impulso no apoio da torcida e conquistaram o maior feito esportivo do país. É incrível ver essas celebrações, alheias à política”, declarou o chefe de imprensa da federação iraquiana, Waleed Tabra.
A comunhão nacional pode não ter durado por tanto tempo, assim como a seleção iraquiana não registrou outros sucessos de tal porte. Caiu na fase de grupos da Copa das Confederações de 2009, enquanto sucumbiu nas Eliminatórias da Copa do Mundo e fez campanhas decentes na Copa da Ásia, mas sem passar das semifinais. De qualquer maneira, a história estava completa. E o Iraque carregará para sempre, na mente e no peito, o que aconteceu naquele 29 de julho de 2007. “A vitória é mais importante para as pessoas iraquianas. Não para o meu currículo. Eu nunca me esquecerei disso, porque foi uma situação especial, em circunstâncias especiais. Nós levamos felicidade para um país, não apenas um time. Isso é o mais importante”, analisou Jorvan Vieira. Uma verdade inegável. Eterna.