Terra de Zizou
·26 de julho de 2023
Terra de Zizou
·26 de julho de 2023
Longe das divisas regionais e sem raízes culturais, a rivalidade entre Lyon e Olympique de Marseille se construiu através do campo e bola. O Choc des Olympiques ou Olympico, como passou a ser conhecido, ganhou corpo a partir dos anos 2000. Foi nessa época que o OL começou a dominar o futebol francês e o OM, fragilizado pelo rebaixamento no começo da década de 90, iniciava um processo de recuperação dentro das quatro linhas.
Outro fato que ajudou a aumentar a rivalidade foi a soberania do Lyon nos anos 2000. Foram sete títulos franceses consecutivos, superando exatamente o Marseille, que entre os anos 80 e 90 emendou quatro taças.
Essa rivalidade superou a barreira das quatro linhas e ganhou as arquibancadas e os bastidores políticos. As duas torcidas não se toleram e os encontros dos dois times costumam ser tensos. Já os cartolas usam e abusam das bravatas para alfinetar um ao outro.
O jogo que serviu para marcar o ápice dessa rivalidade aconteceu na primeira parte da temporada 2009/10, no antigo Estádio Gerland, casa do Lyon. Viradas, dez gols e emoção até o segundo final marcaram um alucinante 5 a 5 que ficou na história do Choc des Olympiques.
Vamos recordar esse jogo?
O Lyon entrou naquela temporada sedento por resultados, afinal de contas, perdeu a hegemonia para o Bordeaux um ano antes. Para isso, foi ao mercado. Com a grana arrecadada com a venda de Benzema ao Real Madrid (35 milhões de euros), o OL abriu o bolso e tirou Lisandro López e Aly Cissokho do Porto, Michel Bastos do Lille e ainda bateu na porta do rival Saint-Étienne para buscar Bafé Gomis, à época, grande revelação do clube. A temporada 2009/10 também foi uma época de transição para os Gones, já que Juninho, grande astro do time no heptacampeonato naquela década, deu adeus ao clube e decidiu dar sequência à carreira no futebol do Qatar.
Foto: Philippe Merle/AFP via Getty Images – OneFootball
O Marseille, na seca desde os anos dourados no começo da década de 90, vivia reformulação parecida. O clube decidiu abrir mão de atletas experientes como Djibril Cissé, Boudewijn Zenden e Lorik Cana, identificados com a torcida, e buscaram caras novas, como Souleymane Diawara, Stéphane M’Bia, Gabriel Heinze e Lucho González. Todos eles vieram sob a mentoria de Didier Deschamps, que estava sem clube desde 2007 e topou suceder Eric Gerets.
Com tamanhas reformulações, o previsível aconteceu e os dois times começaram a temporada com alguma irregularidade. O Lyon, por exemplo, estreou com empate diante do Le Mans, emendou vitórias sobre Valenciennes, Auxerre, Nancy e Lorient, mas entrou numa fase instável a partir da 6ª rodada. Empatou com o PSG, em Paris, ainda venceu Toulouse e Lens, mas foi derrotado em casa pelo Sochaux e tomou quatro do Nice na rodada 10. A recuperação veio apenas na partida seguinte, com uma vitória no clássico sobre o Saint-Étienne (com o gol da vitória sendo de Gomis). Já o Marseille ficou invicto nas primeiras seis partidas, mas venceu somente uma nas quatro rodadas seguintes, antes do choque com o Lyon.
O alento para a dupla era a campanha continental, na UEFA Champions League. Enquanto o OM conseguiu fazer frente a Milan e Real Madrid (tinha 6 pontos após quatro rodadas), o Lyon já havia atropelado o Anderlecht na fase prévia e vinha com uma campanha impressionante na fase de grupos, com 10 pontos numa chave que tinha, por exemplo, o Liverpool, adversário que derrotou em Anfield, na 3ª rodada.
E a 13ª rodada da Ligue 1 começou boa para Lyon e Marseille. O Bordeaux, atual campeão e então líder, jogou mais cedo e acabou derrotado pelo Lille por 2 a 0. O OL, com 26 pontos, poderia pular para a liderança caso vencesse no Stade Gerland. O OM ainda não teria essa chance, mas poderia ultrapassar o próprio Lyon e colar nos Girondins.
Sabendo disso, as duas equipes foram ao campo com formações ofensivas. O Lyon, de Claude Puel, ainda tinha Lloris no gol, Cris na zaga e teve um meio-campo técnico, mas forte fisicamente, com Makoun, Källström e Pjanic. Ederson e Govou ficaram com a responsabilidade de articular as jogadas pelas laterais, enquanto Lisandro López foi a referência ofensiva.
Do outro lado, Didier Deschamps tinha outro goleiro de seleção: Mandanda. A defesa era mais firme e tinha Bonnart e Heinze nas laterais e Hilton e Diawara por dentro. M’Bia e Cheyrou teriam a missão de segurar a cabeça de área para que Abriel acionasse Koné, Niang e Brandão no ataque. Foi, basicamente, a mesma formação que atropelou o Zürich por 6 a 1 alguns dias antes pela Champions League.
Os mais de 38 mil torcedores que foram ao Stade Gerland naquela noite de 8 de novembro de 2009 viram logo de cara um início de jogo alucinante, tirando o fôlego de todo mundo. Mostrando mesmo que queria a liderança, o Lyon buscou o ataque desde o começo. Logo aos 3 minutos, veio o primeiro gol. Källström lançou Lisandro López na área, Hilton cortou temporariamente e Pjanic apareceu como elemento surpresa para ajeitar no peito, invadir a área e fuzilar Mandanda, que precisou buscar a bola no fundo das redes. 1 a 0 para o Lyon.
O OM teve forças para reagir e explorou a sempre eficiente bola aérea dos times de Deschamps. Aos 12 minutos, Abriel cobrou escanteio da esquerda e Diawara cabeceou para o gol. Lloris chegou a tocar na bola, mas sem força e tomou o gol de empate dos visitantes. Empate esse, aliás, que durou pouquíssimo tempo. Apenas dois minutos, para ser mais preciso. Aos 14, Govou correu com a bola pela direita, fez um corte na diagonal e acertou um belo chute de pé direito, no ângulo de Mandanda, que nada pôde fazer para evitar o segundo gol dos anfitriões.
Foto: Philippe Merle / AFP via Getty Images – OneFootball
O jogo estava nas mãos do Lyon. Vencia, criava mais chances, alcançava a liderança e, de fato, aparentava ser o time mais pronto naquele momento. Mas o futebol tem daquelas: uma bobeira e toda a superioridade cai por terra. Hugo Lloris que o diga.
Na última volta do ponteiro do relógio na etapa inicial, o Marseille trocou alguns passes na intermediária e a bola caiu nos pés de Cheyrou. O camisa 7 do OM, mesmo longe do gol, decidiu chutar. A pelota foi no meio do gol, era defensável. Lloris, entretanto, se enganou com a trajetória da bola, errou o movimento da defesa e ficou com as penas nas mãos. 2 a 2 antes do intervalo.
O frango do goleiro do Lyon mudou a ordem da partida e tão logo veio a virada do Marseille. Aos 3 do segundo tempo, Niang construiu a jogada pelo lado esquerdo e jogou na área. Brandão não alcançou, mas o baixinho Baky Koné, de apenas 1,64m, se antecipou a Cissokho, emendou um chute de primeira, estufou as redes de Lloris e colocou o OM em vantagem pela primeira vez no confronto.
Com a vantagem no placar e um ataque rápido na frente, Deschamps não pensou duas vezes em fortalecer sua defesa e dar gás nos contra-ataques. Dessa forma, o OM tomou as rédeas da partida, reduziu ao máximo os espaços do Lyon e ainda contou com a bola parada para encaminhar a vitória. Aos 32, Abriel, mais uma vez num escanteio, achou Brandão no bico da pequena área e o brasileiro deu um toque estiloso para as redes, ampliando para 4 a 2.
Dois gols de vantagem a menos de 15 minutos do fim é certeza de vitória, certo?
Errado!
Num intervalo de menos de dez minutos, as redes foram balançadas quatro vezes e o Gerland viveu uma de suas noites mais mágicas. Primeiro foi aos 36, com Lisandro López que invadiu a área, ficou cara a cara com Mandanda e deu um toquinho sutil para vencê-lo e marcar o terceiro.
Na jogada seguinte, veio o 4 a 4. Delgado cobrou escanteio da direita, a bola passou no primeiro poste e parou no braço de Heinze. O árbitro Stéphane Bré, prontamente, assinalou o pênalti, que foi convertido com precisão por Lisandro.
O jogo se inverteu mais uma vez. O Marseille estava entre as cordas, baqueado com os gols em sequência, enquanto o Lyon voava com o combustível de uma torcida que fazia o Gerland pulsar. A defesa antes intransponível do OM passou a ceder espaços e o OL fez questão de aproveitar. Aos 45, Pjanic articulou uma triangulação com Lisandro e Gomis e ficou em condições de chutar. Inteligente, o bósnio inverteu a jogada, pegou a defesa inteira na contramão e Michel Bastos encheu o pé esquerdo para reverter a vantagem. Loucura no Gerland! 5 a 4 para o Lyon.
Mas o jogo das reviravoltas teve seu último grande ato na jogada seguinte. No abafa, Bonnart arremessou o lateral na grande área, Brandão deu uma casquinha para Valbuena, que atravessou a bola da direita para a esquerda, Cissé deu outra cabeçada e a sobra ficou para Niang. O senegalês girou para cima de Cris, finalizou de pé direito e parou em Lloris, que abafou o chute, e o frame dali para frente é insanidade total.
A bola estava sobrevoando a pequena área e o retrato era o seguinte: M’Bia, Abriel e Brandão esperavam a pelota chegar perto para empurrar para dentro. Toulalan e Cris se engalfinhavam com os adversários, tentando achar a brecha para tirar a bola da área perigosa. Lloris e Pjanic ainda corriam desesperados para evitar o gol, enquanto Niang, agachado, só rezava.
O desfecho, porém, foi o mais aleatório possível. M’Bia e Cris estavam se agarrando e Toulalan se meteu na briga para cortar a bola. Ele acabou se chocando, caiu de maneira desajeitada e marcou contra o gol que determinou o maluco 5 a 5.
Esse jogo marcou a história do Choc des Olympiques e retratou uma temporada que foi histórica tanto para o Lyon, quanto para o Marseille. O OL, de fato, não retomou a soberania na Ligue 1, mas festejou uma campanha inédita de semifinal de UEFA Champions League (parou apenas no Bayern), deixando pelo caminho o Real Madrid de Benzema e Cristiano Ronaldo. Já o OM deu um bico na seca de títulos, conquistou o Francês e a Copa da Liga e fez com que o 5 a 5 ficasse ainda mais valorizado ao término da temporada.