Trivela
·25 de maio de 2021
Trivela
·25 de maio de 2021
*Por Leandro Vignoli
Jonathan David é o primeiro canadense na história a ser campeão da liga francesa. Após o triunfo do Bayern na Liga dos Campeões, todos os olhos se voltaram para Alphonso Davies, 20, o possível melhor canadense da geração. Porém, não seria exagero afirmar que David foi o jogador do Canadá mais importante na temporada do futebol europeu. Aos 21 anos, ele não apenas fez parte da primeira conquista do Lille em dez anos, como teve papel fundamental na reta de chegada.
O atacante marcou 11 gols na liga em 2021 (Mbappé, por exemplo, fez 15), a maioria desses gols muito decisivos para o título. Jonathan David fez os dois na vitória contra o Olympique de Marselha, aos 45 e 47 do segundo tempo. Teve o gol da vitória contra o PSG, a primeira do Lille em Paris em 24 anos. Desde janeiro, o canadense marcou cinco gols da vitória para o Lille. O camisa 9 também marcou o gol de empate contra o Lyon (antes da virada) e um dos gols na partida do título, contra o Angers – além de sofrer o pênalti, convertido por Burak Yilmaz.
Ao todo, David fez 13 gols na Ligue 1, o vice-artilheiro do Lille, atrás do veterano turco, que marco 16 (sendo nove em 2021). Ao contrário do turco, porém, canadense não fez nenhum gol de pênalti. Outro dado curioso: o Lille ganhou literalmente todas as partidas em que Jonathan David marcou um gol.
Após ser o artilheiro do Campeonato Belga, com 18 gols pelo Gent, David foi comprado pelo Lille no começo desta temporada por 30 milhões de euros, o mais caro jogador do Canadá. Na França, porém, ele demorou a engrenar. Foram apenas dois gols no primeiro turno inteiro. A arrancada de David ocorreu justamente na ausência de Yilmaz, que ficou quase 40 dias afastado por uma lesão – ele fez sete gols no período, ao lado do “jonathans trio”, com Jonathan Bamba e Jonathan Ikoné.
Jonathan David liderou a liga em porcentagem de chutes certos a gol, com 60%, segundo dados de scout. Ele ainda terminou no top 10 da Ligue 1 em total de chutes certos ao gol (33, em sétimo) e chutes certos ao gol por 90 minutos (1.26 per 90, em sexto), duas categorias lideradas por Kylian Mbappé. Também foi o quinto em quantidade de chutes necessários para fazer um gol (0.24).
Na parte defensiva, David liderou a liga em pressão no campo de ataque, com 298 (o segundo melhor do Lille, por exemplo, Jonathan Bamba, teve 201; e Neymar 110 – e obviamente aqui não estou comparando a qualidade dos dois atacantes, meramente um dado estatístico).
À parte desses dados de scout, porém, que podem um tanto robóticos sem assistir aos jogos, em si, uma das boas virtudes de David é a de que ele curte meter a bola para dentro. De qualquer jeito que a bola possa vir. O atacante é destro, mas marcou seis gols de pé esquerdo na liga – cinco gols dele na liga foram de rebote, no estilo oportunista. Como no gol contra o Lens, onde ele domina no rebote, não perde tempo e fuzila, de perna esquerda mesmo. Quase uma marca registrada, no gol contra o PSG ele usa um toque para dominar e outro para bater ao gol (dessa vez de direita).
É claro, também, que aqui estamos falando de um jovem canadense de 21 anos em uma liga de nível inferior comparadas às maiores da Europa, mas o estilo oportunista é ainda digno de nota. David não é o Romário, mas para as ambições do Lille provou de grande eficiência.
O atacante canadense nasceu em Nova York, EUA, enquanto os pais haitianos visitavam um familiar. Eles voltaram ao Haiti após três meses e quando David tinha seis anos, imigraram para o Canadá, onde existe uma diáspora de 160 mil haitianos. “Eu não tenho qualquer memória sobre morar no Haiti. Em 2012, quando eu tinha uns 12 anos, voltei pela primeira vez e notei algumas coisas. Principalmente o calor, engarrafamentos e as belas praias”, ele disse, em entrevista à revista belga Sport Voetal.
É nessa mesma entrevista que David afirmou nunca ter se interessado por times da MLS – o seu foco foi sempre o futebol europeu. Ele passou a juventude em times amadores da capital do Canadá, Ottawa, e não teve nenhuma formação em time profissional. Aos 16 anos, foi para Europa, onde foi recusado em testes no Red Bull Salzburg e no Stuttgart (onde disseram basicamente pra ele desistir).
Na Bélgica ele arranjou um contrato “de boca” com o Gent, onde retornou ao completar 18 anos – David terminou os estudos no Canadá. No Gent, fez cinco gols em cinco jogos, renovou o contrato por cinco anos e disputou duas ligas belgas – sendo artilheiro no segundo ano, antes de ir pro Lille.
“Não fui pressionado a assinar com um clube da MLS, mas foi recomendado”, ele disse. “Mas não vi vantagem nessa etapa intermediária. Se não funcionasse na Europa, eu teria tentado a sorte nos Estados Unidos de qualquer modo. Vários jogadores gostariam de vir para a Europa, mas acabam cedendo para um dos três grandes do Canadá na MLS. Não subestime o apelo desses clubes, porque caras de Toronto e Montreal, é claro, não recusam a oportunidade. Em Ottawa não tinha um clube profissional na época, então tive menos problemas para procurar outra coisa.”
Em meios ao playoffs da liga de hóquei (NHL), e pouco espaço na mídia para o futebol, todas as manchetes colocam o nome do atacante antes do clube. “Canadense Jonathan David ajudou o Lille na conquista do título francês”, foi a manchete dos três portais de esportes – quase a versão canadense da Zero Hora, que sempre coloca um gaúcho na manchete, seja lá qual for a notícia.
O campeonato francês não é transmitido no Canadá, mas o serviço de streaming OneSoccer adquiriu os direitos das partidas do Lille, exclusivamente, desde a chegada de David. O atacante é bilíngue e na maior parte do país o seu nome é pronunciado em inglês (Jô-natan Dêi-vid), mas na província do Quebec, assim como em Lille, em francês (Jona-tân Da-víd).
Na seleção, ele ganhou o apelido de Iceman – o homem de gelo. “Ele é esse cara calmo, que não fala muito, e aquele jeito de que nada o deixa nervoso. Um instinto matador, mas sem expressão”, disse o técnico da seleção, John Herdman. Como nasceu nos Estados Unidos, David chegou a receber um convite da seleção americana, mas optou pelo Canadá, jogando um Torneio de Toulon quando ainda defendia o amador Ottawa Internationals. Uma reportagem da TSN (sem legendas) amplia a trajetória do jogador, inclusive quando perdeu a mãe, aos 19 anos.
“Quando eu era adolescente eu nem ao menos sabia que o Canadá tinha uma seleção de futebol. O futebol foi sempre um esporte pequeno, mas agora está mudando gradualmente”, ele diz. “Precisamos de uma classificação para uma Copa do Mundo para popularizar o esporte. A vitória contra os Estados Unidos, que o Canadá não vencia há 34 anos, foi um passo”.
Jonathan David foi o artilheiro da Copa Ouro, em 2019, e atualmente tem 11 gols pela seleção – em apenas 12 jogos. Os próximos passos do Canadá é conseguir a vaga para o octogonal final das eliminatórias da Concacaf para a Copa do Mundo (jogos contra o Suriname e, possivelmente, o Haiti, em junho) e a nova edição da Copa Ouro, marcada para julho.
*Leandro Vignoli é jornalista etc, escreveu o livro À Sombra de Gigantes: uma viagem ao coração das mais famosas pequenas torcidas do futebol europeu (clique aqui e compre o seu). Também é o dono do perfil Corneta Europa e do blog/newsletter Corneta Press.