Trivela
·08 de maio de 2023
Trivela
·08 de maio de 2023
Alguns clubes históricos sustentam os pesos de suas camisas através do envolvimento de suas torcidas pela sobrevivência. É o caso do Belenenses, em pleno processo de reconstrução após anos de desespero. Os Azuis do Restelo lidaram com a negligência dos empresários que compraram o clube, o que culminou numa cisão entre a estrutura profissional e o clube social. A chamada B-SAD ficou com a vaga na primeira divisão, mas num processo de ostracismo que culminou no rebaixamento recente. Já o Belenenses, com seus símbolos preservados e o Estádio do Restelo, precisou se reerguer a partir das divisões distritais. Os Azuis conquistaram cinco acessos nas últimas cinco temporadas, desde 2018/19. Neste final de semana, comemoraram o retorno à segunda divisão, em mais um passo na intenção de honrar a história de um dos maiores clubes de Portugal.
Um dos únicos dois clubes a quebrarem a hegemonia do trio de ferro no Campeonato Português, com o título de 1945/46, o Belenenses atravessa uma década atribulada. O ponto de inflexão aconteceu em 2012, quando o clube perdia destaque na liga nacional e atravessava um período na segunda divisão. A venda de 51% da Sociedade Anônima Desportiva (a SAF do futebol português) para o grupo Codecity iniciou o pesadelo dos Azuis. O retorno à elite até aconteceu em 2013, mas com um preço muito caro a se pagar. O investimento prometido não aconteceu e a SAD passou a tomar decisões à revelia da massa societária, o que criou uma divisão gradativa.
O grupo Codecity era encabeçado pelo empresário Rui Pedro Soares. Chegou com promessas de grandes investimentos na equipe e a melhora das estruturas. Não foi o que aconteceu. O mandatário centralizou as decisões do futebol profissional e passou a negligenciar as outras áreas. Além disso, não estabelecia qualquer tipo de diálogo com os sócios e demais dirigentes. Pesava também as investigações contra Soares em casos de corrupção. Com o passar dos anos, a Codecity aumentou sua participação na SAD e ainda deu um golpe jurídico, ao impedir a recompra do capital do clube pelos associados na data limite de 2017. Estava claro como o Belenenses havia sido sequestrado pela SAD.
O rompimento entre o clube social e a sociedade anônima do Belenenses aconteceu em 2018. O clube se dividiu em dois. A B-SAD continuava com o elenco profissional e com a vaga na primeira divisão. Já o Belenenses, como clube social, precisou montar um novo time a partir das categorias de base e se reconstruir na liga distrital de Lisboa. Ao menos, ficava com o patrimônio dos Azuis, em especial o Estádio do Restelo e o centro de treinamentos, bem como com os símbolos que identificavam a agremiação – como o escudo, o nome oficial e o uniforme. As demais modalidades esportivas além do futebol também pertenciam ao Belenenses. Já a torcida, que nunca engoliu as tramas da Codecity e de Rui Pedro Soares, continuou a apoiar a instituição independentemente do nível em que precisasse recomeçar.
A B-SAD não demorou a derreter. Sempre flertando com o rebaixamento no Campeonato Português, sofreu uma queda inapelável em 2021/22, com claros problemas administrativos. Também corre o risco de rebaixamento na segundona de 2022/23, num momento em que alinha sua fusão com o Cova da Piedade para voltar a ter um estádio próprio. Já o Belenenses caminhou a passos firmes nas divisões de acesso. Subiu na terceira divisão distrital de Lisboa em 2018/19 e na segunda em 2019/20. Em meio às duas promoções, os Azuis comemoraram seu centenário. Já um motivo de grande festa aconteceu em julho de 2020, quando se concluiu a separação total da B-SAD. O Belenenses ainda tinha 10% do capital, que eram de direito na sociedade anônima, mas conseguiu vender sem complicações legais. A comemoração seria completa com mais uma subida em 2020/21, agora na primeira divisão distrital de Lisboa.
Apenas na temporada passada é que o Belenenses voltou a disputar as divisões nacionais, com o ingresso no Campeonato de Portugal, que acabava de se tornar o quarto nível da liga nacional. E o quarto acesso consecutivo seria comemorado pelos Azuis do Restelo. A equipe liderou sua divisão regional na fase de classificação e abocanhou o acesso no hexagonal decisivo, com a terceira colocação. Era mais um passo nesta longa caminhada, com a torcida sempre presente no Estádio do Restelo. Até que o novo salto acontecesse de imediato na terceirona, com a promoção comemorada neste final de semana.
O Belenenses nem fez uma fase de classificação tão boa. Ficou na quarta colocação de seu grupo regional, em que passavam apenas os quatro primeiros. A equipe ficou só um ponto à frente do Sporting B. A resposta viria com mais força no quadrangular semifinal, em que apenas o líder de cada uma das chaves subiria diretamente. Foi quando os Azuis se impuseram na corrida com Länk Vilaverdense, Sanjoanense e Amora. O Belenenses começou com três vitórias, apesar de abusar dos tropeços nas rodadas mais recentes. De qualquer maneira, na rodada final, bastaria um empate contra o Sanjoanense para os Azuis subirem. Deu certo, com o 0 a 0 selando a festa, mesmo que o Vilaverdense tenha igualado os 11 pontos do clube de Belém. Por causa da vantagem no confronto direto, os lisboetas subiram.
“Foi um dia extraordinário. Somos invadidos por muitos sentimentos difíceis de traduzir em palavras. Talvez o sentimento principal seja: prometi e cumpri. Fomos ao inferno e deixamos agora o Belenenses à beira do paraíso nos campeonatos profissionais. Isso é muito importante para nós”, declarou o presidente Patrick Morais de Carvalho, um dos grandes responsáveis pelo ressurgimento do Belenenses, em entrevista ao Tribuna Expresso. O mandatário, entretanto, não pretende se lançar à reeleição depois de todo o esforço dos últimos anos. Deve passar o bastão para que outro toque em frente o processo.
“No plano jurídico era muito difícil obter os sucesso que conseguimos obter e depois casar isso com o plano desportivo. Tem ainda mais valor por causa disso, havia aqui muitas contingências à volta desta equipe”, complementou. “Os adeptos do Belenenses uniram-se na adversidade para fazerem esta caminhada e nós temos sentido isso no aumento da cotização, no aumento do número de sócios. As pessoas neste momento estão muito felizes, muito empolgadas e, até ao momento e em termos associativos, foi extraordinária esta ida ao inferno porque uniu de fato a massa associativa à volta do clube. Nos últimos anos em que a SAD esteve no Restelo, havia já um divórcio muito grande, ninguém sentia aquela equipe como a sua equipe, portanto desse ponto de vista foi muito positivo, em termos associativos”.
O treinador do Belenenses é Bruno Dias, jovem de 36 anos que assumiu o clube no início da temporada. Já o elenco praticamente inteiro é formado por jogadores de países lusófonos, com muitas contratações de jogadores de outros clubes das divisões de acesso para a atual temporada. O nome mais tarimbado é o do capitão Mauro Antunes, que chegou a passar pelas seleções de base. Na zaga, André Serra é o único remanescente do time formado em 2018 que continua como titular. Já o brasileiro do grupo é o ponta Flavinho, que chegou a ser um dos artilheiros da equipe na fase de classificação.
Será uma final bastante especial da terceira divisão do Campeonato Português nesta temporada. O adversário do Belenenses pelo título será o União de Leiria, que conseguiu subir após dez anos amargos na terceirona. A outra vaga no acesso ficará com Braga B ou Länk Vilaverdense (de donos canadenses), que se encararão na repescagem. Já o rebaixamento para a quarta divisão possui uma nota triste, com a queda do Vitória de Setúbal. Outro componente tradicionalíssimo da primeira divisão, o Sadino caiu em 2019/20 da primeira direto para a terceira divisão, por conta de problemas financeiros. Até brigou pelo acesso nas duas últimas campanhas, chegando às fases finais, mas agora cai à quarta divisão. Terá um caminho duro, no qual dependerá de boa gestão e apoio de sua gente – tal qual o Belenenses conseguiu incrivelmente nesta guinada. Melhor ainda, os Azuis poderão dar seu troco em campo contra a B-SAD em 2023/24. Isso se os falsários não forem rebaixados, é claro.