Calciopédia
·02 de maio de 2021
Calciopédia
·02 de maio de 2021
Reduto histórico da resistência italiana, a região da Úmbria tem um clássico que honra essa tradição. As torcidas de Perugia e Ternana, os principais clubes daquela parte da Itália, são majoritariamente orientadas à esquerda do espectro político e frequentam as arquibancadas dos estádios não apenas por amor ao clube. Para os ultras que integram as curvas dos biancorossi e dos rossoverdi, apoiar os seus times consiste num ato de resistência, em oposição ao que definem como a tirania dos valores morais difundidos pela direita política. Um despotismo que, em sua visão, também atinge o futebol e as maneiras de torcer.
Embora o clássico nunca tenha ocorrido na Serie A, esse fato nunca esfriou o calor da rivalidade que esses dois times têm e entre os torcedores que estão sempre nas extremidades dos estádios, atrás dos gols. Em um futebol no qual quase todas as torcidas se classificam como apolíticas, na Úmbria, as curvas são sempre voltadas à esquerda e com grande vínculo com o proletariado.
Para entender porque os ultras das maiores torcidas da Úmbria seguem preceitos ligados ao comunismo e ao anarquismo, é necessário entender um pouco sobre a geopolítica italiana. A região compõe o antigo “cinturão vermelho” da Itália, juntamente a Emília-Romanha, Marcas e Toscana, que também estão localizadas no centro e no centro-norte. Apesar desse legado, os umbros se viram em meio a uma recente mudança significativa: escolhiam governos de esquerda desde 1946, quando a Itália se tornou uma república, mas a partir das eleições de 2018 levaram a Liga Norte ao poder. O partido de extrema direita e o aliado Fratelli d’Italia (“Irmãos da Itália”) cresceram significativamente nas regiões vizinhas, mas a esquerda italiana segue firme nessas localidades apesar do atual contexto político.
As torcidas de Perugia e Ternana se unem na oposição ao governo da Liga Norte e em sua ideologia, mas se separam em muitos outros aspectos. A base da efervescente rivalidade, assim como em todo clássico, reside no chamado campanilismo – a disputa entre cidades, conhecida como bairrismo no Brasil. Os moradores das cidades mais importantes das duas províncias umbras apresentam profundas diferenças nos traços linguísticos, sociais, econômicos e culturais.
De um lado temos Perugia, capital italiana do chocolate, de origem etrusca: uma cidade com inúmeras referências nos âmbitos artístico e cultural, mas também com tradição na indústria de alimentos. Do outro, Terni, uma cidade fundada pelos antigos umbros e com a influência de povos como os filisteus, fenícios e cananeus. As necrópoles situadas nas imediações das siderúrgicas atestam o valor histórico da comuna, que também é um importante centro industrial nos setores de aço e produtos químicos. Consequentemente, possui um extenso histórico de organização da classe operária.
Além de tudo isso, as duas províncias reivindicam o direito de representar toda a região da Úmbria, seguindo cada uma a sua razão – sendo Perugia a capital e Terni o lugar de origem do povo umbro. Portanto, não se trata apenas de um mero conflito entre dois times, mas de uma disputa sobre o controle do território. E, como o futebol é reflexo da sociedade, a guerra simbólica entre os dois combatentes é expressada com plenitude nas partidas.
O primeiro dérbi ocorreu em 18 de abril, na temporada 1925-26 quando ainda nem existia a divisão política que deu origem à província de Terni. A partida válida pela grupo umbro na segunda categoria italiana teve vitória dos “sulistas da Úmbria” por 3 a 1. Mas, na partida de volta, disputada em 9 de maio de 1926, foram os grifoni que levaram a melhor.
No ano seguinte foi criada a província de Terni e o jogo marca não só a disputa por gols, mas todos os aspectos mencionados anteriormente. Todavia, esse primeiro registro da peleja ocorreu em tempos em que o futebol ainda vivia totalmente no amadorismo. Depois, quando as mudanças previstas pela Carta de Viareggio levaram ao profissionalismo, com a criação das séries A, B e C, o primeiro dérbi em uma competição profissional ocorreu somente na Coppa Italia de 1938-39.
Após empate por 1 a 1, houve um jogo extra em Perugia, no qual a equipe rossoverde venceu por 2 a 0 e avançou de fase. Nesta mesma temporada, os times também se encontraram pela primeira vez na Serie C. Em Terni, os times ficaram num empate sem gols; no returno, em Perugia, a Ternana venceu pelo placar mínimo.
Os clássicos mais badalados entre Perugia e Ternana aconteceram na década de 1970. Aqueles seriam tempos históricos para ambas as agremiações, que conseguiram estrear na Serie A – os rossoverdi em 1972 e os biancorossi em 1975. Com duas vitórias e dois empates, a equipe de Terni ficou invicta nas segundonas de 1971-72 e 1973-74, quando ascendeu à elite, mas levou uma traulitada na Coppa Italia de 1972-73. Embora estivesse numa categoria superior aos grifoni, as feras sofreram com o dia feliz de Adriano Lombardi e Giovanni Urban e perderam por um sonoro 5 a 0.
Perugia e Ternana chegaram a ficar mais de 12 anos sem se enfrentarem em partidas oficiais. Retomaram os duelos no fim da década de 1980 e fizeram outro confronto histórico em 20 de outubro, pela Serie C1 1991-92. Na ocasião, o jogo realizado no Renato Curi, estádio dos peruginos, terminou com vitória rossoverde por 1 a 0. Na partida do returno, a Ternana sustentou a vitória no Libero Liberati e conquistou pontos preciosos, que permitiram o seu acesso à divisão superior, com direito a título. Os grifoni, por sua vez, não subiram por causa de dois meros pontinhos.
A vingança do jejum de derrotas do Perugia veio logo no duelo seguinte com a Ternana, mas somente sete anos depois – com uma vitória na Coppa Italia, com gols de Hidetoshi Nakata e Alessandro Melli. Nos três confrontos seguintes, na temporada 2004-05, o time vermelho e branco teve 100% de aproveitamento. No último dos jogos, em 9 de abril de 2005, golpeou o adversário numa implacável goleada de 4 a 0 com participação brasileira, graças à doppietta do ponta Adriano Ferreira Pinto.
Este dia também ficou marcado pelos conflitos dos ultras da Ternana com a polícia. O ocorrido levou à prisão de 13 pessoas e estampou os noticiários, sendo uma das notícias mais importantes do mês. Ficou atrás da morte do Papa João Paulo II – que acontecera em 2 de abril e já adiara o duelo em uma semana – e da iminente queda do segundo governo de Silvio Berlusconi.
O episódio acabou influenciando os confrontos seguintes entre os clubes. Na temporada 2006-07, foi realizado o último Dérbi da Úmbria sem qualquer impedimento à presença de torcedores visitantes ou necessidade de prévio registro junto a órgãos oficiais para comparecimento ao clássico – no Renato Curi, o Perugia venceu por 2 a 1, pela Serie C1.
Na antepenúltima rodada do returno, como os biancorossi lutavam pelo acesso e os rossoverdi tentavam não serem rebaixados à quarta divisão, as autoridades buscaram minimizar possíveis incidentes entre os torcedores e decidiram que a partida de Terni seria com portões fechados. A Ternana venceu, se livrou da queda e impediu o acesso dos rivais.
Na Serie B 2016-17, num dos confrontos mais recentes entre grifoni e fere, aconteceu um dos momentos mais emblemáticos do dérbi umbro. Aos 85 minutos, um torcedor do Perugia presente nas arquibancadas do Curi teve um mal súbito, o que levou os ultras do Perugia a retirarem as suas bandeiras das bancadas e invadirem o campo, no intuito de encerrar o jogo. As organizadas da Ternana também recolheram suas faixas, em sinal de respeito. Como o regulamento não permitia que a partida pudesse ser encerrada sem consequências penais para os mandantes, os jogadores das duas equipes apenas trocaram passes até o apito final, em solidariedade ao falecido.
Até 2021, o clássico registrou enorme equilíbrio em 92 jogos oficiais. Foram contabilizadas 30 vitórias do Perugia e 28 da Ternana, sendo que o empate aparece como o resultado mais frequente – aconteceu 34 vezes. Além disso, o dérbi teve 96 gols marcados pelos biancorossi e 88 pelos rossoverdi.
Como o emocionante momento de 2016-17 ratificou, não é apenas em campo que as duas equipes fazem seus espetáculos. Nas arquibancadas, os torcedores, sobretudo os das curvas, ditam o ritmo da festa durante as partidas, fazendo também uso desse espaço para promover protestos políticos voltados para o combate às mazelas sociais presentes no esporte. As diversas torcidas presentes nas arquibancadas do Perugia e do Ternana são declaradamente ligadas ao espectro político de esquerda.
Não é novidade que política e futebol se misturam. O espaço privilegiado que o esporte possui para servir de palco para preconceitos sociais é o mesmo que os torcedores utilizam para se manifestarem. Os torcedores esquerdistas sabem que a presença de ultras de direita e de extrema direita é muito forte nas arquibancadas. Portanto, sentem que a luta precisa ser contínua.
Uma das torcidas organizadas que merece destaque é a Freak Brothers, formada por ultras da Ternana. Definitivamente, é um dos grupos mais icônicos do futebol italiano. Os Freak Brothers surgiram após jovens de Terni irem à Amsterdã e terem contato com The Fabulous Furry Freak Brothers, uma série de quadrinhos contraculturais criados pelo norte-americano Gilbert Shelton. Logo, eles se identificaram com o estilo de vida das personagens: três irmãos que zombam do establishment e da política de direita.
Assim, procurando algo diferente do que era visto nas arquibancadas das décadas de 1970 e 1980, os Freak Brothers exibiram sua primeira faixa no início dos anos 80. A faixa foi uma das maiores já vistas e marcou o início da atuação e presença desse grupo de torcedores. Promovendo as cores do clube, os ultras também exibe diversas bandeiras que fazem alusão a figuras e símbolos de esquerda, como Che Guevara e a foice e o martelo – ícone que marca a união entre os trabalhadores do campo e das indústrias na luta de classes. O bandeirão com a frase “Menti Perdute”, sem dúvida, é um dos mais famosos do movimento. É possível vê-lo em uma foto de Diego Maradona durante uma partida válida pela Copa do Mundo do México, em 1986.
A ação política deste grupo aparece também além da arquibancada. O grupo promove comícios antirracistas que buscam também combater outros preconceitos no futebol e na sociedade italiana. Esses eventos costumam reunir ultras de diversas outras equipes. Os Freaks são irmanados (ou, no linguajar italiano, têm um gemellaggio) com grupos ligados a Atalanta, Livorno e Sampdoria, que também têm parcelas esquerdistas em suas torcidas, e ao Saint Pauli, da Alemanha.
O próprio estádio Libero Liberati também se constitui num monumento antifascista. A fachada da praça esportiva, que faz parte do patrimônio cultural e arquitetônico de Terni, abriga alguns murais pintados pela Brigada Pablo Neruda, grupo de artistas que tiveram de fugir do Chile na década de 1970 porque se opunham ao ditador Augusto Pinochet e eram perseguidos politicamente. Alguns de seus integrantes se exilaram na cidade umbra, onde foram recebidos pela administração municipal, de esquerda. O prefeito da época convidou o grupo a deixar um testemunho da sua trágica experiência e ofereceu o estádio como ateliê a céu aberto.
Dentro do estádio com ares de obra de arte e ao lado dos Freak Brothers, a Ternana também viu surgir um ilustre torcedor, que até hoje apoia as feras. Ligado à classe trabalhadora, o ex-atacante Riccardo Zampagna, conhecido como o “operário dos gols”, nunca escondeu o seu amor pela cidade e jamais se esqueceu de suas raízes, fincadas no chão de fábrica, na estofaria em que labutou e, claro, na arquibancada do Liberati.
Em Perugia, os ultras têm as mesmas características de ação e pensamento e são representados principalmente pelo grupo Armata Rossa, nome escolhido claramente para manifestar sua ideologia de extrema esquerda – afinal, alude literalmente ao Exército Vermelho soviético. O ídolo da torcida é o ex-meia Paolo Sollier, que saudava os torcedores com o punho cerrado. Além de atleta, Sollier era um intelectual e militava pelo Partido Comunista.
Apesar das semelhanças de pensamento entre as torcidas de Ternana e Perugia, a rivalidade local se sobrepõe: não existe amizade entre esses torcedores. Certa feita, a torcida rossoverde simbolizou as diferenças entre os grupos com uma faixa pitoresca. “Nós forjamos aço, não fazemos chocolatinhos”, lia-se na bandeira, que fazia referência às principais indústrias de cada cidade.
Tudo isso, por fim, mostra a importância e a força de um clássico local. Cercado de particularidades, o Dérbi da Úmbria revela muitos mais elementos que cercam o futebol do que a gente imagina. E, talvez, sirva de alento para os trabalhadores de todo o mundo que uma Ternana comandada por Cristiano Lucarelli tenha alcançado a promoção à Serie B da temporada 2021-22 e que o Perugia também tenha sido capaz de obter o feito. A classe operária pode sonhar com o paraíso.
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