Trivela
·04 de dezembro de 2022
Trivela
·04 de dezembro de 2022
Senegal se despede da Copa do Mundo com um tremendo baque. A vitória sobre o Equador permitiu sonhar, mas os Leões da Teranga não conseguiram reagir depois que a Inglaterra abriu o placar nas oitavas de final. Os desfalques de muito peso minaram as chances dos senegaleses, não apenas por Sadio Mané, mas também pelas ausências de Idrissa Gana Gueye e Cheikhou Kouyaté no compromisso final. E o que fica dessa caminhada no Catar, além das bonitas cenas de comemoração pela classificação no Grupo A e das homenagens a Papa Bouba Diop, foi a ascensão de um novo xodó. Iliman Ndiaye não teve grande impacto contra os ingleses, mas bagunçou contra Catar e Equador. Para quem jogava a sétima divisão há três anos, a Copa do Mundo é um conto de fadas.
Nascido na cidade de Rouen, na França, filho de mãe francesa e pai senegalês, Ndiaye aprendeu a amar o futebol no país de seus ascendentes. Foi numa viagem a Senegal com apenas um ano de idade que o garoto percebeu que a bola era o seu brinquedo favorito. De volta à terra natal, costumava fazer treinos com o pai e isso moldou sua mentalidade. Também aprimorou sua habilidade nas quadras, até ser levado aos seus primeiros clubes. O ponta tinha nove anos quando se juntou ao Rouen. Aos dez, mudou-se da Normandia para a Provença, levado ao Olympique de Marseille. Parecia ter um ótimo futuro pela frente.
No entanto, no início da adolescência, Ndiaye se mudou com a família para Dacar. Teria contato mais frequente com outra cultura de futebol. Vestiria a camisa da base do Dakar Sacré-Cœur, projeto fomentado pelo Lyon, e também batia sua bola nas praias da cidade, onde a técnica costuma se refinar entre os senegaleses. Seriam dois anos vivendo no país, até uma nova mudança, quando seu pai conseguiu um emprego em Londres. Aos 14 anos, o prodígio não dominava o idioma inglês. Mas sabia como tratar a bola e isso auxiliou na integração.
Ndiaye não atuaria num grande clube na Inglaterra na base. Foi acolhido pelas categorias menores do Boreham Wood, time do norte de Londres que atualmente milita na quinta divisão. “Desde o primeiro dia, tento fazer os jogadores perceberem que há um Plano B se o Plano A, virar jogador de futebol, não der certo. Sabemos as probabilidades, então pergunto: ‘O que você fará da sua vida se isso não acontecer para você?'”, contou Cameron Mawer, antigo diretor da base do Boreham Wood, à Sky Sports. “Iliman foi o único em meus 10 anos de clube que apenas dizia: ‘Vou ser jogador profissional'. Ele não cederia. Não existia um, ‘ah, eu poderia ser um professor de educação física' ou qualquer coisa do tipo. Era apenas ‘eu vou ser jogador, Cameron, espere e verá'. Ele tinha uma fé e uma confiança que não via em ninguém”.
O Boreham Wood não se limitava como único compromisso de Ndiaye com o futebol. Paralelamente, o senegalês também vestia a camisa do Rising Ballers, time amador que participa da chamada “Sunday League”, o paralelo ao futebol de várzea na Inglaterra, em competições equivalentes à nona divisão na pirâmide nacional. Foi por lá que chamou atenção dos olheiros do Sheffield United. Era uma ótima chance, depois de ter sido reprovado em peneiras pelo Chelsea e pelo Southampton. Como o próprio ponta já disse, desistir não estava em seu dicionário.
“Sua habilidade para passar no mano a mano, sua velocidade e mudança de direção… Vimos de imediato que ele poderia ser realmente especial. Ele tem uma personalidade contagiante. Você poderia dar uma bola e ele faria truques o dia todo. Como você pode imaginar, os garotos adoravam isso. Coisas assim o ajudaram a amadurecer também, com uma responsabilidade extra. Vejo muitos jogadores habilidosos, mas que não conseguem fazer a transição. Iliman sempre era o jogador que mais trabalhava. O primeiro a chegar e o último a sair. Havia uma fome em seu jogo, uma tenacidade e desejo de ganhar partidas”, analisa também Mawer, à Sky Sports.
Foram seis semanas de treinos com o Sheffield United. Ndiaye impressionou tanto que não apenas as Blades entraram em contato com o Boreham Wood para a contratação. Segundo Cameron Mawer, foram mais de 40 ligações perguntando sobre o prodígio. No entanto, o senegalês preferiu dar prioridade ao clube que abriu as portas. Por conta de sua passagem pelo Olympique de Marseille, o United ainda precisou pagar ao clube formador. Entretanto, os ingleses avaliaram que valia a pena. Estavam impressionados não só com a habilidade, mas também com a velocidade e a mentalidade do novato.
Ndiaye tinha 19 anos quando assinou com o Sheffield United. Ainda não teve espaço na equipe de Chris Wilder e precisou se juntar ao time sub-23. Acabaria cedido por empréstimo ao Hyde United, outro clube pequeno, da sétima divisão. E não era o nível de desafio que acomodava o senegalês. Ele costumava ficar no campo de treinos mesmo depois das sessões e saía apenas quando desligavam os refletores, para não perder o trem de volta a Sheffield. Essa ética de trabalho era uma marca e os próprios companheiros faziam questão de ajudá-lo a retornar para casa.
“Havia jogos em que ele estava muito à frente de todos. Chegou a um ponto em que dissemos: ‘Onde quer que você esteja em campo, dê a bola para Iliman. Não importa o quão bem marcado ele esteja, dê a bola'. Nós só queríamos que ele tivesse a bola o máximo possível. Pode ser um prejuízo para o time se você está focando só em um jogador, mas os rapazes gostavam e ficavam felizes. Nunca vi um jogador tão bom nesse nosso nível. Eu aparecia empolgado no sábado para assistir aos jogos como técnico, porque ele estaria no time”, definiria David McGurk, técnico do Hyde United, ao jornal The Guardian.
Estava claro que Ndiaye não ficaria tanto tempo na sétima divisão. O atacante retornou ao Sheffield United em 2020/21 e apareceu no banco de reservas em algumas partidas da Premier League. Disputou apenas 11 minutos na campanha do rebaixamento, entrando numa goleada por 5 a 0 do Leicester. Já na temporada seguinte, o senegalês virou bem mais frequente na Championship. Sua estreia foi retumbante, com dois gols e uma assistência nos 6 a 2 sobre o Preston North End. Passaria por uma seca depois, mas ainda assim somou 30 jogos na campanha de 2021/22. Chegou a fazer o gol da vitória por 1 a 0 sobre o líder Fulham. E, na reta final, foram quatro gols nas últimas cinco rodadas, impulsionando as Blades aos playoffs de acesso. A promoção escapou na semifinal, com a derrota nos pênaltis para o Nottingham Forest.
A fama de Ndiaye chegou aos ouvidos do técnico Aliou Cissé. O atacante estreou pela seleção de Senegal na Data Fifa de junho, saindo do banco contra Benin nas eliminatórias da Copa Africana de Nações. Depois disso, não sairia mais das convocações. E o início da nova temporada da Championship referendava a sua forma. Ndiaye começou a segundona de 2022/23 voando. Foram nove gols nas primeiras 21 aparições. É um dos principais nomes de um candidato sério ao acesso. E isso atuando em diferentes posições, especialmente como segundo atacante ou meia centralizado. Mesmo tendo disputado só duas partidas por Senegal antes da Copa, era candidato a revelação.
Ndiaye viu do banco a derrota para a Holanda na primeira rodada. Já na segunda partida, o ponta saiu do banco diante do Catar num momento em que os adversários incomodavam. Os catarianos descontaram logo depois, mas o terceiro gol senegalês, que sacramentou a vitória por 3 a 1, saiu com participação direta do camisa 13. Ndiaye bagunçou pela ponta direita e esmerilhou com seus dribles, entregando a bola para Bamba Dieng anotar. A participação decisiva valeu logo a titularidade contra o Equador. E o garoto arrebentou. Foi um tormento durante todo o primeiro tempo, partindo para cima da defesa e dando muito trabalho nas costas de Pervis Estupiñán. Não teve influência direta no resultado, mas a boa atuação dos Leões da Teranga dependeu do seu trabalho.
Contra a Inglaterra que o acolheu, Ndiaye seria nome certo entre os titulares. Aliou Cissé, entretanto, decidiu mudar a maneira do jovem atuar. Tirou-o da ponta direita para ficar mais centralizado, com liberdade para flutuar e se associar com os outros pontas. Não deu tão certo. Foi uma participação apagada do prodígio, em que auxiliou mais na marcação sem a bola do que necessariamente na sua especialidade, os dribles. Poderia ser mais produtivo pelos lados, no lugar de Krépin Diatta, mas o técnico preferiu sacar os dois no intervalo. O camisa 13 fez falta pelo fator imprevisibilidade, diante do que se viu contra Catar e Equador.
Ndiaye se despede da Copa com cinco partidas disputadas por Senegal no total. Aos 22 anos, parece ter um ótimo futuro pela frente. Não é apenas a sua habilidade, mas a própria mentalidade aparente. Certamente vai continuar nas convocações dos Leões da Teranga e terá a consideração de seus compatriotas. Deu motivos para ser acompanhado de perto. E isso vale também para o Sheffield United. Se o ponta já vinha arrebentando na Championship, talvez pinte em breve na Premier League. Não é nada mal para quem, há menos de três anos, se via enfileirando zagueiros na sétima divisão.